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Outro trecho do ʺLivro do Desassossegoʺ (ʺTenho diante de mimʺ)

Bernardo Soares

A Revista da Solução Editora 4, 1929, p. 42.

  • OUTRO TRECHO

    DO ʺLIVRO DO DESASOCEGOʺ, COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA

    Tenho deante de mim as duas paginas grandes do livro pesado; ergo da sua inclinação na carteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além do nada que isto representa, o armazém, até á Rua dos Douradores, enfileira as prateleiras regulares, os empregados regulares, a ordem humana e o socego do vulgar. Na vidraça ha o ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como o socego que está ao pé das prateleiras.

    Baixo olhos novos sobre as duas paginas brancas, em que os meus numeros cuidadosos puzeram resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas paginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços á régua e de lettra, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos elles sem escripta, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.

    No próprio registo de um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do Indo e de Samarcanda, e a poesia da Pérsia, que não é de um logar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desasocego. Mas não me engano, escrevo, somo, e a escripta segue, feita normalmente por um empregado d'este escriptorio.

    Fernando Pessoa

  • OUTRO TRECHO

    DO ʺLIVRO DO DESASSOSSEGOʺ, COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA

    Tenho diante de mim as duas páginas grandes do livro pesado; ergo da sua inclinação na carteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além do nada que isto representa, o armazém, até à Rua dos Douradores, enfileira as prateleiras regulares, os empregados regulares, a ordem humana e o sossego do vulgar. Na vidraça há o ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como o sossego que está ao pé das prateleiras. Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em que os meus números cuidadosos puseram resultados da sociedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços à régua e de letra, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo. No próprio registo de um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do Indo e de Samarcanda, e a poesia da Pérsia, que não é de um lugar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desassossego. Mas não me engano, escrevo, somo, e a escrita segue, feita normalmente por um empregado deste escritório.

    Fernando Pessoa

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    • Bernardo Soares
    • Fernando Pessoa