Corpus version C2.1.0
Meu querido
Venho escrever-lhe para o felicitar pela sua Contemporanea
Quereria mandar-lhe tambem collaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou.
Isto de mim, que é quem mais proximo está de mim, apezar de
tudo. De si e de sua revista, tenho saudades do nosso Orpheu
Contemporanea
Agora o artigo do
Continúa o
Ideal esthetico, meu querido
Esthetica,
A belleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si-propria de preferencias provavelmente de origem magnetica. Tudo é um jogo de forças, e na obra da arte não temos que procurar «belleza» ou coisa que possa andar no goso d’esse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força e equilibrio de força ― energia e harmonia, se V. quizer.
Perante qualquer obra de qualquer arte ― desde a de guardar porcos á de construir symphonias ― pergunto só: quanta força? quanta mais-força? quanta violencia de tendencia? quanta violencia reflexa de tendencia, violencia da tendencia sobre si-propria, força da força em não se desviar da sua direcção, que é um elemento da sua força?
O resto é o mytho das Danaides, ou outro qualquer mytho ―
porque todo o mytho é o das Danaides, e todo o pensamento (diga-o ao
Li o livro do
E, àparte gostar, porque gosto? É sempre mau perguntar,
porque pode haver resposta. Mas pergunto ― porque gosto? Ha força, ha equilibrio
de força, nas Canções
Louvo nas Canções
A arte do
O
Não lhe digo mais. Se continuasse, contradizer-me-hia. Seria abominavel, porque talvez fôsse uma maneira (a inversa) de ser logico. Quem sabe?
Relembro saudosamente ― aqui do Norte improficuo ― os nossos
tempos do Orpheu
Saúdo-o em Distancia Constellada. Esta carta leva-lhe a minha affeição pela sua revista; não lhe leva a minha amisade por si porque V. já ha muito tempo ahi a tem.
Diga ao
Meu querido José Pacheco:
Venho escrever-lhe para o felicitar pela sua Contemporânea, para lhe dizer que não tenho escrito
nada, e para pôr alguns embargos ao artigo do Fernando Pessoa.
Quereria mandar-lhe também colaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou.
Isto de mim, que é quem mais próximo está de mim, apesar de
tudo. De si e de sua revista, tenho saudades do nosso Orpheu. V. continua subrepticiamente, e ainda bem. Estamos, afinal,
todos no mesmo lugar. Parece que variamos só com a oscilação de quem se
equilibra. Repito-lhe que o felicito. Julgava difícil fazer tanto bem aos olhos
em Portugal com uma coisa impressa. Julgo bom que julgasse mal. Auguro à Contemporânea o futuro que lhe desejo.
Agora o artigo do Fernando. Com o intervalo entre a primeira palavra desta carta e a primeira palavra deste parágrafo, já quase me não lembra o que é que lhe queria dizer do artigo. Talvez pensasse em dizer exatamente o que vou escrever a seguir. Emfim, prometi, e digo o que sinto agora, e segundo os nervos deste momento.
Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam. Nada se prova senão para ter a hipocrisia de não afirmar. O raciocínio é uma timidez ― duas timidezes talvez, sendo a segunda a de ter vergonha de estar calado.
Ideal estético, meu querido José Pacheco, ideal estético! Onde foi essa frase buscar sentido? E o que encontrou lá quando o descobriu? Não ha ideais nem estéticas senão nas ilusões que nós fazemos deles. O ideal é um mito da ação, um estimulante como o ópio ou a cocaína: serve para sermos outros, mas paga-se caro ― com o nem sermos quem poderíamos ter sido.
Estética, José Pacheco? Não há beleza, como não há moral, como não há fórmulas senão para definir compostos. Na tragédia físico-química que se chama a Vida, essas coisas são como chamas ― simples sinais de combustão.
A beleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si própria de preferências provavelmente de origem magnética. Tudo é um jogo de forças, e na obra da arte não temos que procurar «beleza» ou coisa que possa andar no gozo desse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força e equilíbrio de força ― energia e harmonia, se V. quiser.
Perante qualquer obra de qualquer arte ― desde a de guardar porcos à de construir sinfonias ― pergunto só: quanta força? quanta mais-força? quanta violência de tendência? quanta violência reflexa de tendência, violência da tendência sobre si própria, força da força em não se desviar da sua direção, que é um elemento da sua força?
O resto é o mito das Danaides, ou outro qualquer mito ― porque todo o mito é o das Danaides, e todo o pensamento (diga-o ao Fernando) enche eternamente um tonel eternamente vazio.
Li o livro do Botto e gosto dele. Gosto dele porque a arte do Botto é o contrário da minha. Se eu gostasse só da minha arte, nem da minha arte gostava, porque vario.
E, à parte gostar, porque gosto? É sempre mau perguntar,
porque pode haver resposta. Mas pergunto ― porque gosto? Há força, há equilíbrio
de força, nas Canções?
Louvo nas Canções a força que lhes
encontro. Essa força não vejo que tenha que ver com ideais nem com estéticas.
Tem que ver com imoralidade. É a imoralidade absoluta, despida de dúvidas.
Assim há direção absoluta ― força portanto; e há harmonia em não admitir
condições a essa imoralidade. O Botto tende com uma energia tenaz para todo o
imoral; e tem a harmonia de não tender para mais coisa alguma. Acho inútil
meter os gregos no caso; grego se veria o Fernando com eles se eles lhe
aparecessem a pedir-lhe contas do sarilho de estéticas em que os meteu. Os
gregos eram lá estetas! Os gregos existiram.
A arte do Botto é integralmente imoral. Não ha célula nela que esteja decente. E isso é uma força porque é uma não-hipocrisia, uma não-complicação. Wilde tergiversava constantemente. Baudelaire formulou uma tese moral da imoralidade; disse que o mau era bom por ser mau, e assim lhe chamou bom. O Botto é mais forte: dá à sua imoralidade razões puramente imorais, porque lhe não dá nenhumas.
O Botto tem isto de forte e de firme: é que não dá desculpas. E eu acho, e deverei talvez sempre achar, que não dar desculpas é melhor que ter razão.
Não lhe digo mais. Se continuasse, contradizer-me-ia. Seria abominável, porque talvez fosse uma maneira (a inversa) de ser lógico. Quem sabe?
Relembro saudosamente ― aqui do Norte improfícuo ― os nossos
tempos do Orpheu, a antiga camaradagem, tudo em Lisboa
de que eu gostava, e tudo em Lisboa de que eu não gostava ― tudo com a mesma
saudade.
Saúdo-o em Distância Constelada. Esta carta leva-lhe a minha afeição pela sua revista; não lhe leva a minha amizade por si porque V. já há muito tempo aí a tem.
Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.