Corpus version C2.1.0
A obra de Canções
Nasce o ideal da nossa consciencia da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideaes possiveis, quantos forem os modos por que é possivel ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e similhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.
Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, ellas são, fundamentalmente, apenas trez. Com effeito, ha só trez conceitos possiveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe.
Podemos ter qualquer cousa por imperfeita simplesmente por ella ser imperfeita: é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, por contra, tel-a por imperfeita porque a imperfeicão resida, não na realização, senão na essencia. Será quantitativa ou qualitativa a differença entre a essencia d’essa cousa imperfeita e a essencia do que consideramos perfeição; quantitativa como se dissessemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso, dissessemos que a noite é imperfeita porque é o contrario do dia.
Pelo primeiro d’estes criterios, applicando-o ao conjunto da
vida, tel-a-hemos por imperfeita por nos parecer que fallece naquillo mesmo por
que se define, naquillo mesmo que parece que deveria ser. Assim, todo o corpo é
imperfeito porque não é um corpo perfeito; toda a vida imperfeita porque,
durando, não dura sempre; todo o prazer imperfeito porque o envelhece o cansaço;
toda a comprehensão imperfeita porque, quanto mais se expande, em maiores
fronteiras confina com o incomprehensivel que a cerca. Quem sente d’esta maneira
a imperfeição da vida, quem assim a compara com ella-propria, tendo-a por infiel
á
Pelo segundo d’estes criterios teremos a vida por imperfeita
por uma deficiencia quantitativa da sua essencia, ou, em outras palavras, por a
considerarmos inferior ― inferior a qualquer cousa, ou a qualquer principio, em
o qual, em relação a ella, resida a superioridade. É esta inferioridade
essencial que, neste criterio, dá ás cousas a imperfeição que ellas mostram.
Porque é vil e terreno, o corpo morre; não dura o prazer, porque é do corpo, e
porisso vil, e a essencia do que é vil é não poder durar; desapparece a
juventude porque é um episodio d’esta vida passageira; murcha a belleza que
vemos porque cresce na haste temporal. Só
Pelo último dos mesmos criterios teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não-existente, porque a não-existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição. Teremos a vida por illusoria; não já imperfeita, como para os gregos, por não ser perfeita; não já imperfeita, como para os christãos, por ser vil e material; senão imperfeita por não existir, por ser mera apparencia, absolutamente apparencia, vil portanto, se vil, não tanto com a vileza do que é vil, quanto com a vileza do que é falso. É d’este conceito de imperfeição que nasce aquella forma do ideal que nos é mais familiarmente conhecida no buddhismo, embora as suas manifestações houvessem surgido na India muito antes d’aquelle systema mystico, filhos ambos, elle como ellas, do mesmo substrato metaphysico. É certo que este ideal apparece, com formas e applicações diversas, nos espiritualistas symbolicos, ou occultistas, de quasi todas as confissões. Como, porém, foi na India que as manifestações formaes d’elle distinctivamente appareceram, poderemos ser imprecisos, porém não seremos inexactos, se dermos a este ideal, por conveniencia, o nome de ideal indio.
Pela propria natureza do seu ideal, é a civilização hellenica essencialmente a civilização artistica. Fazer arte é querer tornar o mundo mais bello, porque a obra de arte, uma vez feita, constitue belleza objectiva, belleza accrescentada á que ha no mundo. Para que esta actividade lembre e preoccupe, é mister haver um criterio objectivo de belleza ou de perfeição. Ora, dos trez criterios de perfeição só o dos gregos tem objectividade. Que impulso natural pode ter para crear obras de arte, formas que pertencem ao mundo e á vida, quem, como o christão, tem o mundo por pó e mal, a vida por vileza e peccado, ou quem, como o mystico da India, tem toda a Apparencia por illusão absoluta, flor que nasceu murcha na haste da Mentira? Se a creação artistica não procedesse de um instincto irreprimivel nas communidades civilizadas, nunca teria havido arte india, nem cristã. E a arte christã, por certo, ter-se-hia approximado mais da imperfeição estrutural e formal da arte india, se não fosse que o hellenismo é um elemento componente do christismo, e que a arte dos povos christãos, tendo a dos gregos por exemplar, se guia, nas suas manifestações superiores, pelos principios assentes como fundamentaes pelo preceito e exemplo dos classicos.
Ha, porém, uma outra razão, esta mais emotiva e profunda, para que o ideal hellenico seja, de todos, o que mais directamente conduz á creação artistica.
O christão é metaphysicamente feliz. Tem os olhos da alma postos naquella perfeição divina em que não ha mudança nem cessação. Pesa-lhe pouco a vileza do mundo: viver e ver são para elle um mal-estar transitorio. Ao indio nada doe o haver mundo; volta para o lado o rosto, e contempla em extase o Todo a que nem o Nada falta. É metaphysicamente feliz tambem.
Outra é a vida espiritual do homem de ideal hellenico. Esse
vê que a vida é imperfeita, porque é imperfeita; porém não regeita a vida,
porque é na mesma vida que tem postos os olhos. Mesmo que veja no mundo dos
deuses aquella belleza suprema, pela qual anseia, anseia tambem por essa belleza
nos homens. «A raça dos deuses e dos homens é uma só», disse
A calma, o equilibrio, a harmonia, characteristicos distinctivos, com outros, que os não contradizem, da arte grega, provam bem que não é abusiva a attribuição d’esta intima direcção logica ao caminho do instincto hellenico para o ideal esthetico absoluto.
Quando o helleno pretende pôr em arte o seu ideal, isto é, quando o ideal hellenico assume o aspecto creador ou activo, são trez as formas de manifestação por que se revela.
Na primeira, e mais alta, d’essas formas, o helleno, vendo
que a vida é imperfeita, busca crear, elle, a perfeição, substituindo a arte á
vida; e busca incluir em cada obra, para que a substituição seja perfeita, ou
toda a vida ou um aspecto supremo da vida. É esta a forma intellectual e
constructiva do ideal esthetico absoluto;
Na segunda, e media, d’essas formas, o helleno, sentindo que a vida é imperfeita, busca aperfeiçoal-a em si proprio, vivendo-a com uma comprehensão intensa, vivendo de dentro, com o espirito, a essencia do transitorio e do imperfeito. É esta a forma emotiva e dolorosa do ideal esthetico absoluto; foi este conceito da vida o que creou a tragedia, desconhecida, como especie emotiva e esthetica, antes dos gregos.
Na terceira, e infima, d’essas formas, o helleno, vendo e sentindo vagamente a imperfeição das cousas, porém sem força espiritual, quer para construir uma perfeição que as substitua, quer para se consubstanciar emotivamente com a sua imperfeição, decide acceital-as como se fossem perfeitas, escolhendo em cada uma aquelle momento, aquelle gesto, aquella passagem que de tal modo encheu a nossa capacidade de sensação que naquelle momento, naquelle gesto, naquella passagem, a sentimos perfeita. É esta a forma sensual do ideal esthetico absoluto; forma debil, porque não a energiza uma reacção da intelligencia, vazia, porque a emoção lhe não dá corpo, mas por isso mesmo, porque é esthetica e mais nada, propriamente classificavel de ideal esthetico, sem qualificação.
De que maneira, por que processo reconheceremos o estheta, propriamente tal, na sua obra? Quaes são os signaes necessarios da applicação do ideal esthetico? Como distinguiremos, se se trata de poetas, o estheta do poeta simples, que canta simplesmente o prazer e a vida, porque lhe não cabe mais na alma? Como distinguiremos o estheta do christão revoltado, que procura o peccado só porque é peccado, e blasphema, embora subtilmente, só para ter a consciencia da blasphemia? Em outras palavras como distinguiremos o estheta do satanico menor?
A distincção não apresenta difficuldade, desde que nos representemos com clareza em que consiste necessariamente a applicação activa do ideal esthetico.
Se o ideal esthetico consiste na consideração vaga de que a vida é imperfeita, e que só é perfeita, num momento feliz, a nossa sensação d’ella, força é que essa consideração não attinja um alto grau de absorpção metaphysica ou moral; porque, se fôr altamente metaphysica haverá consciencia de mais para poder haver illusão, e, se fôr altamente moral, haverá dôr de sobra para que a illusão possa agradar.
O primeiro characteristico da arte do estheta é pois a
ausencia de elementos metaphyRenascença
Nisto se distingue a obra do estheta da obra do artista simples, em quem os elementos metaphysicos e moraes são ausentes, não por differença de ideal, senão por ausencia d’elle.
Se, porém, o estheta substitue a idéa de belleza á idéa de
verdade e á de bem, o certo é que, por isso mesmo que as substituiu por outra,
se não interessa pelas idéas de bem e de verdade. Não é por isso, propriamente,
nem sceptico nem immoral; o proposito de ser sceptico revela uma preoccupação
metaphysica, o de ser immoral uma preoccupação ethica, e o character negativo de
ambas as preoccupações não as torna menos preoccupações. Nisto claramente se
distingue o estheta do mau christão decadente, como
Se tivermos presentes estas considerações na analyse do livro
de
Que a substancia do livro é altamente intellectual, revela-o
o estudo cuidado da forma e rhythmo, a escolha severa dos momentos
representativos, a falta de espontaneidade emotiva que em cada verso se
manifesta. Tudo é pensado, tudo é critico e consciente. Não ha, porém, como
seria de esperar de uma intelligencia tão constantemente empregada, metaphysica
nenhuma, nem explicita nem implicita, interesse nenhum pelas idéas como taes. É
uma intelligencia que dirige, porém não pensa; que comprehende, porém não
aprofunda; que guia, porém não se preoccupa. Nem positivamente, nem
negativamente, suggere o livro Canções
Canções
Das trez formas, que podemos conceber, da belleza physica ― a
graça, a força e a perfeição ―, o corpo feminino tem só a primeira, porque não
pode ter a belleza da força sem quebra da sua feminilidade, isto é, sem perda do
seu character proprio; o corpo masculino pode, sem quebra da sua masculinidade,
reunir a graça e a força; a perfeição só aos corpos dos deuses, se existem, é
dado tel-a. Um homem, se se guiar pelo instinto sexual, e não pelo instinto
esthetico, cantará, como poeta, só o corpo feminino. Essa attitude representa
uma preoccupação exclusivamente moral. O instinto sexual, normalmente tendente
para o sexo opposto, é o mais rudimentar dos instinctos moraes. A sexualidade é
uma ethica animal, a primeira e a mais instinctiva das
Foi assim que pensaram os gregos; foi esse pensamento que Canções
«Como é confessadamente a belleza do homem que tem que ser concebida sob uma idéa geral, assim tenho notado que aquelles que observam a belleza só nas mulheres, e pouco ou nada se commovem com a belleza dos homens, raras vezes teem instinto imparcial, vital, innato da belleza na arte. A pessoas como essas a belleza da arte grega parecerá sempre falha, porque a sua belleza suprema é antes masculina que feminina».
Ora é este conceito, puramente esthetico, da belleza physica
que é, como todos sabem, porque escandalizadamente se notou, uma das duas idéas
inspiradoras das Canções
Para com o prazer ha trez attitudes possiveis ― acceital-o, rejeital-o, acceital-o com moderação. A cada uma d’estas attitudes correspondem graus varios de moralidade e de immoralidade, porque pode haver moralidade no modo de acceitar o prazer, e immoralidade na maneira de rejeital-o. Aqui, porém, trata-se de quem acceita o prazer, e só o prazer; não temos portanto que considerar as outras hypotheses.
Acceite o prazer, e só o prazer, de que modo pode elle ser acceite? Pode ser acceite como alegria, ou como forma da alegria, e é esta a maneira moral, porque é natural, de acceitar o prazer. Pode ser acceite como excitação, como, por assim dizer, a unica forma agradavel da dôr, pois que toda a excitação ― tomada a palavra no sentido vulgar, e não no physiologico ― tem um fundo de dor; e é esta a maneira immoral, porque é a anti-natural, de acceitar o prazer. Pode, finalmente, ser acceite simplesmente como prazer, como, em sua essencia, nem alegre nem triste, porém a unica cousa que pode encher o vacuo absurdo da existencia. D’este conceito de prazer não se pode dizer que seja moral nem immoral, logo que se não esqueça que se está considerando o prazer só, isolando-o de qualquer outro elemento da vida.
Quem leia com attenção normal o livro Canções
Canções
Resulta d’estas considerações, que me exforcei por fazer
lucidas e concisas, a determinação exacta de que Canções
Que importancia tem este facto? A de representar uma
raridade. O typo perfeito do estheta é rarissimo na civilização christã, ou de
origem christã, e mais que raro, porque, até ás Canções
O ideal esthetico é, como se viu, uma das formas ― a mais tenue e vazia ― do ideal hellenico; mas, porisso mesmo que é a mais tenue e vazia d’ellas, é a mais explicitamente representativa d’aquelle ideal. Para que appareça um typo de estheta é necessario um meio social analogo ao meio social hellenico. Ora o meio social europeu, se é certo que modernamente, e em algumas das suas manifestações, de certo modo se approxima, tanto quanto pode ser, do meio social da Grecia antiga, é, em todo o caso, radicalmente differente d’elle. Segue que o apparecimento na Europa moderna de um typo integro de estheta só pode dar-se por um desvio pathologico, isto é, por uma inadaptação estructural aos principios constitutivos da civilização europeia, em que vivemos.
Este desvio pathologico é, porém, no caso dos grandes
esthetas europeus o elemento predisponente, se bem que, por isso mesmo, radical,
do seu esthetismo; a elle se accrescenta uma mergencia prolongada do espirito na
atmosphera hellenica, que lhe cria um perpetuo contacto, ainda que só
intellectual, com a Grecia antiga e os seus ideaes. Da acção d’este segundo
elemento sobre o primeiro o estheta desabrocha. São d’esta origem os esthetismos
de
A dentro do ideal esthetico, os casos de
Temos, pois, por demonstração severamente conduzida, que o
livro Canções
Àparte este valor, que pertence áquella obra em absoluto,
isto é, como obra e não como obra em portuguez, o livro Canções
Canções
ANTÓNIO BOTTO é o único português, dos que conhecidamente escrevem, a quem a designação de esteta se pode aplicar sem dissonância. Com um perfeito instinto ele segue o ideal a que se tem chamado estético, e que é uma das formas, se bem que a ínfima, do ideal helénico. Segue-o, porém, a par de com o instinto, com uma perfeita inteligência, porque os ideais gregos, como são intelectuais, não podem ser seguidos inconscientemente.
A obra de António Botto, no
que realmente típica, resume-se, por ora, no seu último livro, Canções. Que essa obra se distingue com
facilidade da obra de qualquer outro poeta, português ou estrangeiro ― todos,
que possam ver, o podem ver. Já não é tão fácil explicar em que consiste,
distintivamente, essa diferença. Algum interesse haverá em determiná-lo.
Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.
Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três. Com efeito, há só três conceitos possíveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe.
Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita: é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, por contra, tê-la por imperfeita porque a imperfeicão resida, não na realização, senão na essência. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência dessa coisa imperfeita e a essência do que consideramos perfeição; quantitativa como se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso, disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.
Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da
vida, tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que falece naquilo mesmo por
que se define, naquilo mesmo que parece que deveria ser. Assim, todo o corpo é
imperfeito porque não é um corpo perfeito; toda a vida imperfeita porque,
durando, não dura sempre; todo o prazer imperfeito porque o envelhece o cansaço;
toda a compreensão imperfeita porque, quanto mais se expande, em maiores
fronteiras confina com o incompreensível que a cerca. Quem sente desta maneira
a imperfeição da vida, quem assim a compara com ela própria, tendo-a por infiel
à
Pelo segundo destes critérios teremos a vida por imperfeita por uma deficiência quantitativa da sua essência, ou, em outras palavras, por a considerarmos inferior ― inferior a qualquer coisa, ou a qualquer princípio, em o qual, em relação a ela, resida a superioridade. É esta inferioridade essencial que, neste critério, dá às coisas a imperfeição que elas mostram. Porque é vil e terreno, o corpo morre; não dura o prazer, porque é do corpo, e por isso vil, e a essência do que é vil é não poder durar; desaparece a juventude porque é um episódio desta vida passageira; murcha a beleza que vemos porque cresce na haste temporal. Só Deus, e a alma, que ele criou e se lhe assemelha, são a perfeição e a verdadeira vida. Este é o ideal a que poderemos chamar cristão, não só porque é o cristismo a religião que mais perfeitamente o definiu, mas também porque é aquela que mais perfeitamente o definiu para nós.
Pelo último dos mesmos critérios teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não-existente, porque a não-existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição. Teremos a vida por ilusória; não já imperfeita, como para os gregos, por não ser perfeita; não já imperfeita, como para os cristãos, por ser vil e material; senão imperfeita por não existir, por ser mera aparência, absolutamente aparência, vil portanto, se vil, não tanto com a vileza do que é vil, quanto com a vileza do que é falso. É deste conceito de imperfeição que nasce aquela forma do ideal que nos é mais familiarmente conhecida no budismo, embora as suas manifestações houvessem surgido na Índia muito antes daquele sistema místico, filhos ambos, ele como elas, do mesmo substrato metafísico. É certo que este ideal aparece, com formas e aplicações diversas, nos espiritualistas simbólicos, ou ocultistas, de quase todas as confissões. Como, porém, foi na Índia que as manifestações formais dele distintivamente apareceram, poderemos ser imprecisos, porém não seremos inexatos, se dermos a este ideal, por conveniência, o nome de ideal índio.
Pela própria natureza do seu ideal, é a civilização helénica essencialmente a civilização artística. Fazer arte é querer tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte, uma vez feita, constitui beleza objetiva, beleza acrescentada à que há no mundo. Para que esta atividade lembre e preocupe, é míster haver um critério objetivo de beleza ou de perfeição. Ora, dos três critérios de perfeição só o dos gregos tem objetividade. Que impulso natural pode ter para criar obras de arte, formas que pertencem ao mundo e à vida, quem, como o cristão, tem o mundo por pó e mal, a vida por vileza e pecado, ou quem, como o místico da Índia, tem toda a Aparência por ilusão absoluta, flor que nasceu murcha na haste da Mentira? Se a criação artística não procedesse de um instinto irreprimível nas comunidades civilizadas, nunca teria havido arte índia, nem cristã. E a arte cristã, por certo, ter-se-ia aproximado mais da imperfeição estrutural e formal da arte índia, se não fosse que o helenismo é um elemento componente do cristismo, e que a arte dos povos cristãos, tendo a dos gregos por exemplar, se guia, nas suas manifestações superiores, pelos princípios assentes como fundamentais pelo preceito e exemplo dos clássicos.
Há, porém, uma outra razão, esta mais emotiva e profunda, para que o ideal helénico seja, de todos, o que mais diretamente conduz à criação artística.
O cristão é metafisicamente feliz. Tem os olhos da alma postos naquela perfeição divina em que não há mudança nem cessação. Pesa-lhe pouco a vileza do mundo: viver e ver são para ele um mal-estar transitório. Ao índio nada dói o haver mundo; volta para o lado o rosto, e contempla em êxtase o Todo a que nem o Nada falta. É metafisicamente feliz tambem.
Outra é a vida espiritual do homem de ideal helénico. Esse vê que a vida é imperfeita, porque é imperfeita; porém não rejeita a vida, porque é na mesma vida que tem postos os olhos. Mesmo que veja no mundo dos deuses aquela beleza suprema, pela qual anseia, anseia também por essa beleza nos homens. «A raça dos deuses e dos homens é uma só», disse Píndaro; a uns deve pertencer o que aos outros pertence. Por isso, dos três idealistas, é o heleno o único que não pode rejeitar aquela vida a que chama imperfeita. O seu ideal é, portanto, humanamente o mais trágico e profundo.
A calma, o equilíbrio, a harmonia, característicos distintivos, com outros, que os não contradizem, da arte grega, provam bem que não é abusiva a atribuição desta íntima direção lógica ao caminho do instinto helénico para o ideal estético absoluto.
Quando o heleno pretende pôr em arte o seu ideal, isto é, quando o ideal helénico assume o aspeto criador ou ativo, são três as formas de manifestação por que se revela.
Na primeira, e mais alta, dessas formas, o heleno, vendo que a vida é imperfeita, busca criar, ele, a perfeição, substituindo a arte à vida; e busca incluir em cada obra, para que a substituição seja perfeita, ou toda a vida ou um aspeto supremo da vida. É esta a forma intelectual e construtiva do ideal estético absoluto; Homero e Virgílio dos antigos, Dante e Milton dos modernos, são os representantes máximos dela. As obras destes poetas mostram a preocupação severa da perfeição absoluta, revelada tanto na estruturação harmónica de um conjunto pleno de significação, quanto na execução escrupulosa de todos os elementos seus componentes.
Na segunda, e média, dessas formas, o heleno, sentindo que a vida é imperfeita, busca aperfeiçoá-la em si próprio, vivendo-a com uma compreensão intensa, vivendo de dentro, com o espírito, a essência do transitório e do imperfeito. É esta a forma emotiva e dolorosa do ideal estético absoluto; foi este conceito da vida o que criou a tragédia, desconhecida, como espécie emotiva e estética, antes dos gregos.
Na terceira, e ínfima, dessas formas, o heleno, vendo e sentindo vagamente a imperfeição das coisas, porém sem força espiritual, quer para construir uma perfeição que as substitua, quer para se consubstanciar emotivamente com a sua imperfeição, decide aceitá-las como se fossem perfeitas, escolhendo em cada uma aquele momento, aquele gesto, aquela passagem que de tal modo encheu a nossa capacidade de sensação que naquele momento, naquele gesto, naquela passagem, a sentimos perfeita. É esta a forma sensual do ideal estético absoluto; forma débil, porque não a energiza uma reação da inteligência, vazia, porque a emoção lhe não dá corpo, mas por isso mesmo, porque é estética e mais nada, propriamente classificável de ideal estético, sem qualificação.
De que maneira, por que processo reconheceremos o esteta, propriamente tal, na sua obra? Quaes são os sinais necessários da aplicação do ideal estético? Como distinguiremos, se se trata de poetas, o esteta do poeta simples, que canta simplesmente o prazer e a vida, porque lhe não cabe mais na alma? Como distinguiremos o esteta do cristão revoltado, que procura o pecado só porque é pecado, e blasfema, embora subtilmente, só para ter a consciência da blasfémia? Em outras palavras como distinguiremos o esteta do satânico menor?
A distinção não apresenta dificuldade, desde que nos representemos com clareza em que consiste necessariamente a aplicação ativa do ideal estético.
Se o ideal estético consiste na consideração vaga de que a vida é imperfeita, e que só é perfeita, num momento feliz, a nossa sensação dela, força é que essa consideração não atinja um alto grau de absorção metafísica ou moral; porque, se for altamente metafísica haverá consciência de mais para poder haver ilusão, e, se for altamente moral, haverá dor de sobra para que a ilusão possa agradar.
O primeiro característico da arte do esteta é pois a
ausência de elementos metafíRenascença
de Pater, o maior dos estetas europeus, é
o exemplo culminante desta atitude.
Nisto se distingue a obra do esteta da obra do artista simples, em quem os elementos metafísicos e morais são ausentes, não por diferença de ideal, senão por ausência dele.
Se, porém, o esteta substitui a ideia de beleza à ideia de verdade e à de bem, o certo é que, por isso mesmo que as substituiu por outra, se não interessa pelas ideias de bem e de verdade. Não é por isso, propriamente, nem cético nem imoral; o propósito de ser cético revela uma preocupação metafísica, o de ser imoral uma preocupação ética, e o caráter negativo de ambas as preocupações não as torna menos preocupações. Nisto claramente se distingue o esteta do mau cristão decadente, como Baudelaire ou Wilde.
Se tivermos presentes estas considerações na análise do livro de António Botto, não nos será difícil determinar que esse livro representa uma das revelações mais raras e perfeitas do ideal estético, que se podem imaginar.
Que a substância do livro é altamente intelectual, revela-o
o estudo cuidado da forma e ritmo, a escolha severa dos momentos
representativos, a falta de espontaneidade emotiva que em cada verso se
manifesta. Tudo é pensado, tudo é crítico e consciente. Não há, porém, como
seria de esperar de uma inteligência tão constantemente empregada, metafísica
nenhuma, nem explícita nem implícita, interesse nenhum pelas ideias como tais. É
uma inteligência que dirige, porém não pensa; que compreende, porém não
aprofunda; que guia, porém não se preocupa. Nem positivamente, nem
negativamente, sugere o livro Canções qualquer metafísica. Duas ideias
centrais governam a inspiração do poeta, e lhe servem de metafísica e de moral.
São as ideias de beleza física e de prazer. A análise do conteúdo dessas duas
ideias, tais quais se nos apresentam nas Canções, revelará o esteta inequivocamente. No modo como
apresenta a primeira delas, o poeta afasta-se de toda a espécie de moralidade;
no modo como apresenta a segunda, de toda a espécie de imoralidade.
Das três formas, que podemos conceber, da beleza física ― a
graça, a força e a perfeição ―, o corpo feminino tem só a primeira, porque não
pode ter a beleza da força sem quebra da sua feminilidade, isto é, sem perda do
seu carácter próprio; o corpo masculino pode, sem quebra da sua masculinidade,
reunir a graça e a força; a perfeição só aos corpos dos deuses, se existem, é
dado tê-la. Um homem, se se guiar pelo instinto sexual, e não pelo instinto
estético, cantará, como poeta, só o corpo feminino. Essa atitude representa
uma preocupação exclusivamente moral. O instinto sexual, normalmente tendente
para o sexo oposto, é o mais rudimentar dos instintos morais. A sexualidade é
uma ética animal, a primeira e a mais instintiva das
Foi assim que pensaram os gregos; foi esse pensamento que Winckelmann, fundador do estetismo na Europa,
descobrindo-o neles, reproduziu, como no passo célebre que Pater transcreveu, e que parece feito para servir de
prefácio a um livro como Canções:
«Como é confessadamente a beleza do homem que tem que ser concebida sob uma ideia geral, assim tenho notado que aqueles que observam a beleza só nas mulheres, e pouco ou nada se comovem com a beleza dos homens, raras vezes têm instinto imparcial, vital, inato da beleza na arte. A pessoas como essas a beleza da arte grega parecerá sempre falha, porque a sua beleza suprema é antes masculina que feminina».
Ora é este conceito, puramente estético, da beleza física
que é, como todos sabem, porque escandalizadamente se notou, uma das duas ideias
inspiradoras das Canções.
Para com o prazer há três atitudes possíveis ― aceitá-lo, rejeitá-lo, aceitá-lo com moderação. A cada uma destas atitudes correspondem graus vários de moralidade e de imoralidade, porque pode haver moralidade no modo de aceitar o prazer, e imoralidade na maneira de rejeitá-lo. Aqui, porém, trata-se de quem aceita o prazer, e só o prazer; não temos portanto que considerar as outras hipóteses.
Aceite o prazer, e só o prazer, de que modo pode ele ser aceite? Pode ser aceite como alegria, ou como forma da alegria, e é esta a maneira moral, porque é natural, de aceitar o prazer. Pode ser aceite como excitação, como, por assim dizer, a única forma agradável da dor, pois que toda a excitação ― tomada a palavra no sentido vulgar, e não no fisiológico ― tem um fundo de dor; e é esta a maneira imoral, porque é a antinatural, de aceitar o prazer. Pode, finalmente, ser aceite simplesmente como prazer, como, em sua essência, nem alegre nem triste, porém a única coisa que pode encher o vácuo absurdo da existência. Deste conceito de prazer não se pode dizer que seja moral nem imoral, logo que se não esqueça que se está considerando o prazer só, isolando-o de qualquer outro elemento da vida.
Quem leia com atenção normal o livro Canções, não tardará que veja que é este último
o conceito que António Botto forma do prazer, que
é neste sentido de compreendê-lo que ele o canta. Canções é um hino ao prazer, porém não ao
prazer como alegria, nem como raiva, senão simplesmente como prazer. O prazer,
como o poeta o canta, nem serve de despertar a alegria da vida, nem de ministrar
um antídoto a uma dor substancial constante; serve apenas de encher um vácuo
espiritual, a ser conceito de vida a quem não tem nenhum. Há neste livro, sim, a
intuição do fundo trágico do ideal helénico, do fundo trágico de todo o prazer
que sabe que não tem além. Essa intuição, porém, se é do que é trágico, não é
trágica em si. Este prazer não tem a cor da alegria, nem a da dor. «A alegria»
disse Nietzsche, «quer eternidade, quer profunda
eternidade». Não é, nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso
que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer,
porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor,
como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a
eternidade num só momento.
Resulta destas considerações, que me esforcei por fazer
lúcidas e concisas, a determinação exata de que António Botto, no seu livro Canções, se revela um dos tipos mais perfeitos e mais
íntegros do esteta, que se podem imaginar.
Que importância tem este facto? A de representar uma
raridade. O tipo perfeito do esteta é raríssimo na civilização cristã, ou de
origem cristã, e mais que raro, porque, até às Canções, desconhecido, em Portugal. A razão
dessa raridade, quer em toda a Europa, quer em Portugal, e o valor que nela
haja, são relativamente fáceis de compreender.
O ideal estético é, como se viu, uma das formas ― a mais ténue e vazia ― do ideal helénico; mas, por isso mesmo que é a mais ténue e vazia delas, é a mais explicitamente representativa daquele ideal. Para que apareça um tipo de esteta é necessário um meio social análogo ao meio social helénico. Ora o meio social europeu, se é certo que modernamente, e em algumas das suas manifestações, de certo modo se aproxima, tanto quanto pode ser, do meio social da Grécia antiga, é, em todo o caso, radicalmente diferente dele. Segue que o aparecimento na Europa moderna de um tipo íntegro de esteta só pode dar-se por um desvio patológico, isto é, por uma inadaptação estrutural aos princípios constitutivos da civilização europeia, em que vivemos.
Este desvio patológico é, porém, no caso dos grandes estetas europeus o elemento predisponente, se bem que, por isso mesmo, radical, do seu estetismo; a ele se acrescenta uma mergência prolongada do espírito na atmosfera helénica, que lhe cria um perpétuo contacto, ainda que só intelectual, com a Grécia antiga e os seus ideais. Da ação deste segundo elemento sobre o primeiro o esteta desabrocha. São desta origem os estetismos de Winckelmann e de Pater, quase, em verdade, os únicos tipos exatos do esteta que a civilização europeia pode apresentar. Como, porém, este estetismo tem uma base cultural, resulta que tem a plenitude e a largueza que distinguem todos os produtos culturais, em contraposição aos naturais seus semelhantes, e por isso de algum modo transcende a estreiteza específica do ideal estético, sem todavia deixar de lhe pertencer.
A dentro do ideal estético, os casos de Winckelmann e de Pater representam o génio, porque a tendência para a realização cultural imanente no seu estetismo ingénito é, por sua natureza, sintética, o caso de António Botto representa o talento, porque o ideal estético, dada a sua estreiteza e vacuidade, representa já o senso estético isolado de todos os outros elementos psíquicos, e, no caso de António Botto, esteta simples, esse isolamento não se modifica, como no estetismo culto, pelo reflexo nele da multiplicidade dos objetos de cultura.
Temos, pois, por demonstração severamente conduzida, que o
livro Canções é uma obra de
talento, tendo além desse, o valor acessório e especial de ser o único exemplo,
que eu saiba, na literatura europeia, do isolamento espontâneo e absoluto do
ideal estético em toda a sua vazia integridade.
À parte este valor, que pertence àquela obra em absoluto,
isto é, como obra e não como obra em português, o livro Canções tem, para nós em Portugal, um outro
aspeto de valor, já de ordem relativa. É que é o único exemplo em Portugal da
realização literária, de qualquer espécie, do ideal estético. Facilmente o
verificará quem houver lido com atenção o que estabelecemos sobre os
característicos do esteta. Artistas tem havido muitos em Portugal; estetas só
o autor das Canções.