Corpus version C2.1.0
A arte chamada satirica é aquella cujo intuito consiste em
traduzir um objecto, sem erro de traducção, para inferior a si-proprio.
Baseia-se porisso em um dos trez sentimentos d’onde essa intenção pode nascer —
o odio ou aversão, o desprezo, e o interesse futil e consciente de ser futil,
que é uma especie de desprezo carinhoso. A revolta, o riso, o sorriso — eis as
trez manifestações que consoante o sentimento gerador, tenta produzir com
respeito ao objecto que trata.
Toda a outra arte procura tornar o seu objecto superior a si-proprio, busca n’elle uma qualquér especie de além-elle.
Desde que a intenção da arte deixe de ser o tornar o objecto
superior a si-proprio, passa fatalmente a ser o tornal-o inferior a si-proprio,
visto que a via media não existe, porque (poisque a arte é essencialmente
interpretação) uma cousa é egual a si-propria nunca na
arte, mas só na vida.
Basta considerar um objecto futilmente, como meramente interessante, para o inferiorisar, visto que cada Cousa
ou Sensação, momento espacial ou psychico do Mysterio, ou, pelo menos, da Vida,
basta que seja considerada sem uma consciencia clara ou obscura de que é isso,
para ser ipso facto traduzida para inferior a
si-propria.
D’ahi o existir, além do odio (que produz a revolta) e o desprezo (que produz o riso), o interesse futil (que produz o sorriso) como sentimento gerador de obra satirica, propriamente assim chamada.
D’ahi o caracter basilarmente negativo da arte satirica.
Acontece porém que toda a arte é creação; ora sendo toda a
arte creação, e sendo toda a creação, por sua natureza, affirmação, resulta que
a arte satirica, que é negativa, encerra em sua essencia o paradoxo de que é
grande na proporção em que sahe para fóra de ser satirica. Quanto mais satirica
menos satirica. Ahi estão o Dom
Quixote
A Tale of a
Tub
Não se julgue porém que isto — mera constatação — leva escondido o puxar para despresivel a arte de satirizar. N’essa arte, como na outra, pode haver, e em cada um dos seus trez generos, brilhantismo, talento e genio. Pode haver mesmo um artista genial em nos dar o interesse futil das cousas; basta que nol-o dê com a plena dolorosa consciencia d’essa futilidade. E isso é porque (voltamos ao mesmo paradoxo) já essa dôr da consciencia do futil nos leva para além da satira.
Porque o genio satirico é aquelle que,
quér faça satira pelo odio, quer pelo despreso, quér pelo interesse futil, nos
dá o além talento, em qualquér dos trez generos, será aquelle que cegantemente,
multiformalmente, nos dér o futil como futil, o ridiculo como ridiculo o odioso
como odioso. — O meramente intelligente ou brilhante será aquelle que, não sem
Se, de posse d’estes claros elementos para a critica, nos
aproximarmos da obra de
Isto, porém, é uma classificação de especie, não de valôr. O que nos importa saber é o valôr do artista dentro do genero a que pertence.
Que
Mas que este artista tem brilhantismo e intelligencia, muito e muita — eis o que está fóra de se poder querer negar. Mas terá talento? O ponto para quem quer discutir é este.
Eu creio que elle tem talento. Basta reparar que ao sorriso do seu lapis se liga o polymorphismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe intelligencia apenas.
É interessante de varios modos, interessado de varias maneiras na futilidade da Vida, apanhando-lhe ora este, ora aquelle, momento de espuma, sem consciencia, infelizmente, de que essa espuma é a orla de um mar antigo, vasto e misterioso.
E o seu polymorphismo — a que attribuil-o, cingindo-nos
criticamente só a elle? Será polyaptidão do artista, incerteza em encontrar-se,
ou uma assemelhavel imitação ou adaptação a varios generos? Creio na Synthese,
sempre, e aqui ella vem em meu auxilio. Porque me parece que de todos estes trez
elementos se forma o multiformismo do artista. Ha qualquer cousa de procurar; ha, infelizmente, tambem qualquer cousa de achar (nos outros); — mas ha tambem, para quem sabe vêr,
nitidamente personalidade e originalidade atravez d’essas influenciações e
tentativas.
A arte chamada satírica é aquela cujo intuito consiste em
traduzir um objeto, sem erro de tradução, para inferior a si próprio.
Baseia-se por isso em um dos três sentimentos d’onde essa intenção pode nascer —
o ódio ou aversão, o desprezo, e o interesse fútil e consciente de ser fútil,
que é uma espécie de desprezo carinhoso. A revolta, o riso, o sorriso — eis as
três manifestações que consoante o sentimento gerador, tenta produzir com
respeito ao objeto que trata.
Toda a outra arte procura tornar o seu objeto superior a si próprio, busca nele uma qualquer espécie de além-ele.
Desde que a intenção da arte deixe de ser o tornar o objeto
superior a si próprio, passa fatalmente a ser o torná-lo inferior a si próprio,
visto que a via média não existe, porque (pois que a arte é essencialmente
interpretação) uma coisa é igual a si própria nunca na
arte, mas só na vida.
Basta considerar um objeto futilmente, como meramente interessante, para o inferiorizar, visto que cada Coisa
ou Sensação, momento espacial ou psíquico do Mistério, ou, pelo menos, da Vida,
basta que seja considerada sem uma consciência clara ou obscura de que é isso,
para ser ipso facto traduzida para inferior a
si própria.
Daí o existir, além do ódio (que produz a revolta) e o desprezo (que produz o riso), o interesse fútil (que produz o sorriso) como sentimento gerador de obra satírica, propriamente assim chamada.
Daí o caráter basilarmente negativo da arte satírica.
Acontece porém que toda a arte é criação; ora sendo toda a
arte criação, e sendo toda a criação, por sua natureza, afirmação, resulta que
a arte satírica, que é negativa, encerra em sua essência o paradoxo de que é
grande na proporção em que sai para fora de ser satírica. Quanto mais satírica
menos satírica. Aí estão o Dom
Quixote e A Tale of a
Tub a pedirem que os citemos como exemplos.
Não se julgue porém que isto — mera constatação — leva escondido o puxar para desprezível a arte de satirizar. Nessa arte, como na outra, pode haver, e em cada um dos seus três géneros, brilhantismo, talento e génio. Pode haver mesmo um artista genial em nos dar o interesse fútil das coisas; basta que no-lo dê com a plena dolorosa consciência dessa futilidade. E isso é porque (voltamos ao mesmo paradoxo) já essa dor da consciência do fútil nos leva para além da sátira.
Porque o génio satírico é aquele que,
quer faça sátira pelo ódio, quer pelo desprezo, quer pelo interesse fútil, nos
dá o além talento, em qualquer dos três géneros, será aquele que cegantemente,
multiformalmente, nos der o fútil como fútil, o ridículo como ridículo o odioso
como odioso. — O meramente inteligente ou brilhante será aquele que, não sem
Se, de posse destes claros elementos para a crítica, nos aproximarmos da obra de Almada Negreiros, agora exposta em Lisboa, não teremos dificuldade para pragas em lhe encontrar classificação.
Almada Negreiros pertence aos
satiristas que se aplicam a dar a futilidade das coisas. A sua arte é
suavemente para o sorriso. Não tem nem ódios nem desprezos, pelo menos
artisticamente; por isso a sua arte não nos deixa na alma rasto de revolta ou
eco de
Isto, porém, é uma classificação de espécie, não de valor. O que nos importa saber é o valor do artista dentro do género a que pertence.
Que Almada Negreiros não é um génio — manifesta-se em não se manifestar. Nada de dolorosamente consciente de quanto o fútil simboliza e resume das coisas da Vida. Um ou outro assunto é tratado mais a sério; mas nem esse sério leva em si pequena porção que seja de individualidade e especialidade, nem, mesmo, o sério é o doloroso.
Mas que este artista tem brilhantismo e inteligência, muito e muita — eis o que está fora de se poder querer negar. Mas terá talento? O ponto para quem quer discutir é este.
Eu creio que ele tem talento. Basta reparar que ao sorriso do seu lápis se liga o polimorfismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe inteligência apenas.
É interessante de vários modos, interessado de várias maneiras na futilidade da Vida, apanhando-lhe ora este, ora aquele, momento de espuma, sem consciência, infelizmente, de que essa espuma é a orla de um mar antigo, vasto e misterioso.
E o seu polimorfismo — a que atribuí-lo, cingindo-nos
criticamente só a ele? Será poliaptidão do artista, incerteza em encontrar-se,
ou uma assemelhável imitação ou adaptação a varios géneros? Creio na Síntese,
sempre, e aqui ela vem em meu auxílio. Porque me parece que de todos estes três
elementos se forma o multiformismo do artista. Há qualquer coisa de procurar; há, infelizmente, também qualquer coisa de achar (nos outros); — mas há também, para quem sabe ver,
nitidamente personalidade e originalidade através dessas influenciações e
tentativas.