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Na floresta do alheamento

Fernando Pessoa

A Águia 20, agosto de 1913, pp. 38-42.

  • [38]

    NA FLORESTA DO ALHEAMENTO

    Sei que despertei e que ainda durmo. O meu côrpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cêdo ainda... Sinto-me febril de longe. Péso-me, não sei porquê...

    N’um torpôr lucido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o somno e a vigilia, n’um sonho que é uma sombra de sonhar. Minha attenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.

    Um vento de sombras sópra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cahe de um firmamento desconhecido um orvalho môrno de tédio. Uma grande angustia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a briza aos perfis dos cópas.

    Na alcôva mórbida e morna a antemanhã de lá fóra é apenas um halito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para que ha-de um dia raiar?... Custa-me o saber que elle raiará, como se fôsse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.

    Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra especie de realidade surge, e eu em meio d’ella, não sei de que onde que não é este...

    Surge mas não apaga esta, esta da alcôva tépida, essa de uma floresta extranha. Coexistem na minha attenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.

    Que nítida de outra e de ella essa trémula paysagem transparente!...

    E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de m’o perguntar?... Eu nem sei querel-o saber...

    A alcôva vaga é um vidro escuro atravez do qual, consciente d’elle, vejo essa paysagem..., e a essa paysagem conheço-a ha muito, e ha muito que com essa mulher que desconheço érro, outra realidade, atravez da irrealidade d’ella. Sinto em mim seculos de conhecer aquellas arvores e aquellas flôres e aquellas vias em desvios e aquelle sêr meu que alli vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou n’esta alcova veste de penumbras de vêr...

    De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou actual, d’estes vagos moveis e reposteiros e do seu torpôr de nocturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só-ella a paysagem d’aquelle outro mundo...

    Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma [39]no horizonte d’essa terra diversa... E ha momentos em que o chão que alli pisamos é esta alcova visivel...

    Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ancia passiva é a vida falsa que me estreita...

    Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e por detraz da minha attenção sonha comigo alguém... E talvez eu não seja senão um sonho d’esse Alguém que não existe...

    Lá fóra a antemanhã tão longinqua! a floresta tão aqui ante outros olhos meus!

    E eu, que longe d’essa paysagem quase a esqueço, é ao tel-a que tenho saudades d’ella, é ao percorrel-a que a chóro e a ella aspiro...

    As arvores! as flores! o esconder-se copado dos caminhos!...

    Passeavamos ás vezes, braço dado, sob os cédros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um echo de som de fonte. Davamo’-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a illusão do amôr...

    No nosso jardim havia flores de todas as bellezas... — rosas de contornos enrolados, lyrios de um branco amarellecendo-se, papoulas que seriam occultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos canteiros, myosotis mínimos, camelias estereis de perfume... E, pasmados por cima de hervas altas, olhos, os girasoes isolados fitavam-nos grandemente.

    Nós roçavamos a alma toda vista pelo frescôr visivel dos musgos e tinhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o chôro á lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o eramos...

    Carvalhos cheios de seculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentaculos mortos das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre arvore e arvore de perto, pendiam no silencio das latadas os cachos negrejantes das uvas...

    O nosso sonho de viver ia adeante de nós, alado, e nós tinhamos para elle um sorriso egual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a attenção entregue do outro braço que o sentia.

    A nossa vida não tinha dentro. Éramos fóra e outros. Desconheciamo’-nos, como se houvessemos aparecido ás nossas almas depois de uma viagem atravez de sonhos...

    Tinhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço immenso empequenara-se-nos na attenção. Fóra d’aquellas arvores proximas, d’aquellas latadas affastadas, d’aquelles montes ultimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá ás cousas que existem?...

    Na clepsydra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho [40]marcavam horas irreaes... Nada vale a pena, ó meu amôr longinquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...

    O movimento parado das arvores: o socego inquieto das fontes; o halito indefinivel do rythmo intimo das seivas; o entardecer lento das cousas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordancia espiritual ao entristecer longinquo, e proximo á alma, do alto silencio do ceu; o cahir das folhas, compassado e inutil, pingos de alheamento, em que a paysagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma patria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.

    Alli vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medil-o. Um decorrer fóra do Tempo, uma extensão que desconhecia os habitos da realidade no espaço... Que horas, ó companheira inutil do meu tedio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas alli!... Horas de cinza de espirito, dias de saudade espacial, seculos interiores de paysagem externa... E nós não nos perguntavamos para que era aquillo, porque gosavamos o saber que aquillo não era para nada.

    Nós sabíamos alli, por uma intuição que por certo não tinhamos, que este dolorido mundo onde seriamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são halitos de fórmas, e para além d’essa não havia nada. E era por causa da contradicção de saber isto que a nossa hora de alli era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso sentil-a ella extranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepusculo outomnal...

    Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderiamos vêr, e era-nos a felicidade escutar, até vêl-o em nós, esse mar onde sem duvida singravam caravellas com outros fins em percorrel-o que não os fins uteis e commandados da Terra.

    Reparavamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em setins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.

    E assim o murmurio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham á nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos alli acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da côr dos amores e do sabor dos odios. Julgavamo’-nos imortaes...

    Alli vivemos horas cheias de um outro sentirmol-as, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonaes á certeza rectangula da vida. Horas imperiaes depostas, horas vestidas de purpura gasta, horas cahidas n’esse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angustias...

    E doía-nos gosar aquillo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exilio calmo, toda essa paysagem nos sabia a sermos d’este mundo, toda ella era humida da pompa de um vago tedio, [41]triste e enorme e perverso como a decadencia de um imperio ignoto...

    Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pallidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.

    O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa attenção somnolenta ao misterio de tudo isto é molle como uma cauda de vestido arrastado n’um cerimonial no crepusculo.

    Nenhuma ancia nossa tem razão de ser. Nossa attenção é um absurdo consentido pela nossa inercia alada.

    Não sei que oleos de penumbra ungem a nossa idéa do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa idéa de haver a nossa vida...

    Nenhum de nós tem nome ou existencia plausivel. Se pudessemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo ririamos sem duvida de nos julgarmos vivos. O frescôr aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.

    Desenganemo-nos, meu amôr, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós... Não tiremos do dedo o annel magico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silencio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...

    E ei-la que, ao irmos a sonhar fallar n’ella, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foje de deante d’ella, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa idéa do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta mysteriosa enquadra...

    As flores, as flores que alli vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não n’ellas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequencia, orchestras de perfumes sonoros... Arvores cuja volupia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua pôlpa... Sombras que eram reliquias de outr’oras felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paysagem que se bocejava em proxima... Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-arvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!...

    Loucura de sonho n’aquelle silencio alheio!...

    A nossa vida era toda a vida... O nosso amôr era o perfume do amôr... Viviamos horas impossiveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabiamos, com toda a carne da nossa carne, que não eramos uma realidade...

    Eramos impessoaes, ôcos de nós, outra cousa qualquer... Eramos aquella paysagem esfumada em consciencia de si propria... E assim como ella era duas — de realidade que era, a illusão — assim [42]eramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele-proprio, se o incerto outro viveria...

    Quando emergiamos de repente ante o estagnar dos lagos sentiamo-nos a querer soluçar... Alli aquella paysagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tedio innumero de ser... Cheios, sim, do tedio de ser, de ter de ser qualquer cousa, realidade ou illusão — e esse tedio tinha a sua patria e a sua voz na mudez e no exilio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demoravamos á beira d’aquelles lagos, tanto de nós com elles ficava e morava, symbolizado e absorto...

    E que fresco e feliz horror o de não haver alli ninguem! Nem nós, que por alli iamos, alli estavamos... Porque nós não eramos ninguem. Nem mesmo eramos cousa alguma... Não tinhamos vida que a Morte precisasse para matar. Eramos tão tenues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixára inuteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma briza pelo cimo d’uma palmeira.

    Não tinhamos época nem propósito. Toda a finalidade das cousas e dos seres ficára-nos á porta d’aquelle paraiso de ausencia. Immobilisara-se, para nos sentir sentil-a, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos fructos...

    E assim nós morremos a nossa vida, tão attentos separadamente a morrel-a que não reparámos que eramos um só, que cada um de nós era uma illusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero echo do seu proprio ser...

    Zumbe uma mosca, incerta e mínima...

    Raiam na minha attenção vagos ruidos, nitidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sósinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza sossobra e o meu comprehender-me, embalado de opios, adormece...

    A manhã rompeu, como uma queda, do cimo palido da Hora...

    Acabaram de arder, meu amôr, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...

    Desenganemo-nos da esperança, porque trahe, do amôr, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.

    Desenganemo’-nos, ó Velada, do nosso proprio tedio, porque se envelhece de si-próprio e não ousa ser toda a angustia que é.

    Não choremos, não odiemos, não desejemos...

    Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...

     

    Do «Livro do Desasocego»
    em preparação

    Fernando Pessôa

  • [38]

    NA FLORESTA DO ALHEAMENTO

    Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...

    Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.

    Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis dos copas.

    Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para que há de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.

    Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...

    Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.

    Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente!...

    E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber...

    A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem..., e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...

    De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só-ela a paisagem daquele outro mundo...

    Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma [39]no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...

    Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita...

    Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém... E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe...

    Lá fora a antemanhã tão longínqua! a floresta tão aqui ante outros olhos meus!

    E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro...

    As árvores! as flores! o esconder-se copado dos caminhos!...

    Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor...

    No nosso jardim havia flores de todas as belezas... — rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoulas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos canteiros, myosotis mínimos, camélias estéreis de perfume... E, pasmados por cima de ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.

    Nós roçávamos a alma toda vista pelo frescor visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o eramos...

    Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas...

    O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.

    A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos...

    Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?...

    Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho [40]marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...

    O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.

    Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade no espaço... Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa... E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.

    Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la ela estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal...

    Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.

    Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em setins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.

    E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais...

    Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias...

    E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio, [41]triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto...

    Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.

    O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.

    Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.

    Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida...

    Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.

    Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...

    E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra...

    As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram relíquias de outr’oras felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima... Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!...

    Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...

    A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não eramos uma realidade...

    Eramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Eramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas — de realidade que era, a ilusão — assim [42]éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...

    Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar... Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...

    E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Eramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.

    Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...

    E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que eramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...

    Zumbe uma mosca, incerta e mínima...

    Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece...

    A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...

    Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...

    Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.

    Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.

    Não choremos, não odiemos, não desejemos...

    Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...

     

    Do «Livro do Desassossego»
    em preparação

    Fernando Pessoa

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    • Fernando Pessoa

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    • «Livro do Desasocego»