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A Ceifeira

Fernando Pessoa

Terra Nossa , setembro de 1916, p. 46.

  • A Ceifeira

    Ella canta, pobre ceifeira,
    Julgando-se feliz talvez...
    Canta e ceifa e a sua voz cheia
    De alegre e anonyma viuvez
    Ondula como um canto de ave
    No ar limpo como um limiar,
    E ha curvas no enredo suave
    Do som que ella tem a cantar.
    Ouvil-a alegra e entristece,
    Na sua voz ha o campo e a lida,
    E canta como se tivesse
    Mais razões p’ra cantar que a vida.
    Ah, com tão limpida pureza
    A sua voz entra no azul
    Que em nós sorri quanto é tristeza
    E a vida sabe a amor e a sul!
    Canta! Arde-me o coração.
    O que em mim ouve está chorando.
    Derrama no meu peito vão
    A tua incerta voz ondeando!
    Ah, poder ser tu, sendo eu!
    Ter a tua alegre inconsciencia
    E a consciencia d’isso! Ó céu,
    Ó campo, ó canção, a sciencia
    Pesa tanto e a vida é tão breve!
    Entrae por mim dentro, tornae
    Minh’alma a vossa sombra leve!...
    Depois, levando-me, passae!...

    FERNANDO PESSOA.

    Poema republicado, sem título, em ʺAlguns Poemas / De um Cancioneiroʺ, Athena 3, Dezembro de 1924, pp. 82-88. Para além de diferenças ortográficas e de pontuação, na segunda publicação a quarta e quinta estrofes são omitidas e substituídas por uma nova estrofe, que começa com o verso ʺAh, canta, canta sem razão!ʺ.
  • A Ceifeira

    Ela canta, pobre ceifeira,
    Julgando-se feliz talvez...
    Canta e ceifa e a sua voz cheia
    De alegre e anónima viuvez
    Ondula como um canto de ave
    No ar limpo como um limiar,
    E há curvas no enredo suave
    Do som que ela tem a cantar.
    Ouvi-la alegra e entristece,
    Na sua voz há o campo e a lida,
    E canta como se tivesse
    Mais razões pra cantar que a vida.
    Ah, com tão límpida pureza
    A sua voz entra no azul
    Que em nós sorri quanto é tristeza
    E a vida sabe a amor e a sul!
    Canta! Arde-me o coração.
    O que em mim ouve está chorando.
    Derrama no meu peito vão
    A tua incerta voz ondeando!
    Ah, poder ser tu, sendo eu!
    Ter a tua alegre inconsciência
    E a consciência disso! Ó céu,
    Ó campo, ó canção, a ciência
    Pesa tanto e a vida é tão breve!
    Entrai por mim dentro, tornai
    Minh’alma a vossa sombra leve!...
    Depois, levando-me, passai!...

    FERNANDO PESSOA.

    Poema republicado, sem título, em ʺAlguns Poemas / De um Cancioneiroʺ, Athena 3, Dezembro de 1924, pp. 82-88. Para além de diferenças ortográficas e de pontuação, na segunda publicação a quarta e quinta estrofes são omitidas e substituídas por uma nova estrofe, que começa com o verso ʺAh, canta, canta sem razão!ʺ.
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    • Fernando Pessoa