ALGUNS POEMAS
SACADURA CABRAL
Morto, quedou,
Servo da Sorte infiel que a sorte
Deu e tirou.
A noite o encheu.
De extranho mar que extranha plaga,
Nosso, o acolheu?
Joia do ousar,
Que teve por eterno engaste
O céu e o mar.
GLADIO
A sua sancta guerra.
Sagrou-me Seu em genio e em desgraça
Ás horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer-justiça são Seu nome
Dentro em mim a vibrar.
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma!
DE UM CANCIONEIRO
O sopro do longo outomno
Amarelleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num somno,
Na livida solidão.
As folhas, e volve, e revolve,
E esvahe-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento livido volve
E expira na lividez.
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sel-o!… Mais frio
O vento vago voltou.
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
Tam como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.
Raie a madrugada,
Ou splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gosar.
Não sei porque agrado,
Enche-se de lagrimas
Meu olhar parado.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infancia
Que me lembra em ti.
Quero aquelle outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tam attento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
A mão que por ella passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!
E a fraqueza que ella tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguem!
Pastor? Que importa? Perdida
Série de notas vaga e sem sentido nenhum,
Como a vida.
A aria alada.
Pobre aria fóra de musica e de voz, tam cheia
De não ser nada!
Aria, ao parar;
E já ao ouvil-a soffro a saudade d’ella
E o quando cessar.
Beija-me na fronte…
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.
Meu dêsde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo extranho.
Sobre o meu cabello…
Tudo é illusão.
Sonhar é sabel-o.
Só a quem já confia!
É só á dormente, e não á morta, sperança
Que accorda o teu dia.
Todo sonho vão,
Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo
E a ter coração,
A esses raias sem o dia que trazes, ou sòmente
Como alguem que vem
Pela rua, invisivel ao nosso olhar consciente,
Por não ser-nos ninguem.
Mal vejo. Parece
Que uma alheia magua
Na minha alma desce —
De algum outro mundo
Onde a dor é um bem
E o amor é profundo,
Ao longe, illudida,
A vida a morrer
O sonho da vida.
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lubrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na illusão de amar.
Um sonho finge ser.
O spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Sem magua nem amor…
No teu olhar eu leio
O intimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e goso e dor.
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Tornou-se-me extranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa seria ou vã.
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor —
Um dia egual aos outros, da eterna familia
De serem assim.
Da manhã que vem
Sahindo lenta da propria essencia da noite que era,
Para quem,
Por tantas vezes ter sempre sperado em vão,
Já nada spera.
Julgando se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anonyma viuvez,
No ar limpo como um limiar,
E ha curvas no enredo suave
Do som que ella tem a cantar.
Na sua voz ha o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p’ra cantar que a vida.
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ter a tua alegre inconsciencia,
E a consciencia d’isso! Ó céu!
Ó campo! ó canção! A sciencia
Entrae por mim dentro! Tornae
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passae!
FERNANDO PESSOA
O poema ʺGladioʺ foi republicado em Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, 1930, pp. 21-22. Para além de diferenças ortográficas, a segunda publicação apresenta a correção de uma gralha da primeira, lendo-se no início do terceiro verso da segunda estrofe ʺE esta febre de alémʺ. A transcrição aqui apresentada segue esta correção.
Em ʺAlguns Poemas / De um Cancioneiroʺ Pessoa republica quatro poemas, anteriormente publicados sob os títulos “Impressões do Crepusculo” (A Renascença, fevereiro de 1914), ʺA Ceifeiraʺ (Terra Nossa, setembro de 1916, p. 46), ʺCanção de Outomnoʺ (Ilustração Portuguesa, 28 de janeiro de 1922, p. 86) e ʺCançãoʺ (Ilustração Portuguesa, 11 de fevereiro de 1922, p. 129), apresentando as diferentes versões destes poemas diferenças significativas.