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Naufrágio de Bartolomeu

Fernando Pessoa

Teatro- Revista de Critica 1, 1 de março de 1913, p. 6.

  • Naufragio de Bartholomeu

    Nenhum livro para creanças deve ser escrito para creanças. Escrever de cousas simples com simplicidade é quanto se exige d’aquela especie de adido á pedagogia que o sr. Lopes-Vieira quer ser. Assim, João de Deus não escreveu a Engeitadinha senão com o escrupulo de ser simples. E porque o assumpto era tambem simples, as creanças comprehendem-o. Se quizesse ser infantil, acontecia-lhe isto — seria infantil. O sr. Lopes-Vieira quer escrever para creanças mediante intuição da alma infantil, como uma creança, escrevendo para creanças. Mesmo que se saisse bem d’isto, não se sahia bem d’isto. Porque as creanças não escrevem. Escrever como uma creança, é toleravel sendo creança, porque o ser creança o torna toleravel. Mas o que uma creança escreve, ou não se publica, ou se publica para adultos, psycologos. E que interesse tem para creanças esta baba pedagogica? Que interesse ha para adultos n’esta traducção para verso do estylo do sr. Nunes da Matta? Que interesse fica, para psycologos d’esta pobreza de senso-comum, obediencia aos elogios de parvos ou videiros e casta abstenção das voluptuosidades de pensar e crear-arte, do S. Francisco de Assis da Livraria Ferreira?

    Salvo no caso d’um genio supremo, com chave para todas as portas da expressão, o querer ser simples dá com o querente na visinhança de quem quer ser sublime. Este dá comsigo em absurdo. Aquelle escorrega-se para idiota. É este, ao que parece, o tragico fim comico de quem foi o autor do Ar Livre e de O Poeta Saudade . Como estes fenomenos de combustão-em-asneira incontrassem uma atmosfera de elogios propicia, a chama augmentou até vir queimar a critica para fóra da indiferença. Esse fenomeno de elogios — esse sim é que era merecedor de uma analise de quimica psycologica.

    A fama que o sr. Lopes-Vieira tem, ex-ganhou-a dignamente, porque foi com uma obra bella, e por vezes grande, que se enfameceu. Foi com moeda de lei que adquiriu o incenso com que se estonteou. Como muitos outros, e em parte pela mesma razão thuribular, creou fama e deitou-se a dormir. E visto que estes livros para creanças e parte de outros, recentes, são o seu somno, bem se pode dizer que dorme como uma bêsta.

    Mas voltemos, accusadoramente, ao caso.

    O sr. Lopes-Vieira é um criminoso. É-o por trez razões. Está estragando, com o seu gato-por-lebre de simplicidade, o rudimentar senso estetico de creanças, que, mesmo que sejam só duas, são classificaveis de inumeras, ante o horror do crime. ― Está tornando ridiculos assumptos que conviria tratar com uma decencia que a estupidez mesmo quando involuntaria, nunca tem. Pobres cães nossos amigos tinhosos de Lopes-Vieira! Pobre Bartholomeu Dias, tão embobecido de pedagogia! — E, por ultimo, para tudo de nocivo ser, o sr. Lopes-Vieira é até antipedagogico, porque quem escreve

    Que era de antes o mar? Um quarto escuro
    Onde os meninos tinham medo de ir

    merece uma inquisição de professores.

    Educados na estupidez pela leitura das obras infantis do sr. Lopes-Vieira, levados ao anti-patriotismo pelo inevitavel desdem que um livro como o Bartholomeu Marinheiro leva a ter pelo navegador que ali aparece vestido de bébé de Carnaval, cheios de fobias por lhes terem sido metaforisadas na infancia cousas como que um quarto escuro é logicamente terrivel, os homens de Portugal de amanhã (adoptados escolarmente, como tudo o que dizemos n´este artigo leva a crer que sejam, os livros do sr. Lopes-Vieira) terão por Shakespeare o sr. Julio Dantas, por Shelley o sr. Lopes-Vieira... e serão hespanhoes.

    Porque em que diabo pode vir a dar uma nação de parvos, de anti-patriotas e de panofobicos senão em deixar de ser nação?

    Fernando Pessoa.

  • Naufrágio de Bartolomeu

    Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças. Escrever de coisas simples com simplicidade é quanto se exige daquela espécie de adido à pedagogia que o sr. Lopes-Vieira quer ser. Assim, João de Deus não escreveu a Engeitadinha senão com o escrúpulo de ser simples. E porque o assunto era também simples, as crianças compreendem-no. Se quisesse ser infantil, acontecia-lhe isto — seria infantil. O sr. Lopes-Vieira quer escrever para crianças mediante intuição da alma infantil, como uma criança, escrevendo para crianças. Mesmo que se saísse bem disto, não se saía bem disto. Porque as crianças não escrevem. Escrever como uma criança, é tolerável sendo criança, porque o ser criança o torna tolerável. Mas o que uma criança escreve, ou não se publica, ou se publica para adultos, psicólogos. E que interesse tem para crianças esta baba pedagógica? Que interesse há para adultos nesta tradução para verso do estilo do sr. Nunes da Mata? Que interesse fica, para psicólogos desta pobreza de senso comum, obediência aos elogios de parvos ou videiros e casta abstenção das voluptuosidades de pensar e criar-arte, do S. Francisco de Assis da Livraria Ferreira?

    Salvo no caso dum génio supremo, com chave para todas as portas da expressão, o querer ser simples dá com o querente na vizinhança de quem quer ser sublime. Este dá consigo em absurdo. Aquele escorrega-se para idiota. É este, ao que parece, o trágico fim cómico de quem foi o autor do Ar Livre e de O Poeta Saudade. Como estes fenómenos de combustão-em-asneira encontrassem uma atmosfera de elogios propícia, a chama aumentou até vir queimar a crítica para fora da indiferença. Esse fenómeno de elogios — esse sim é que era merecedor de uma análise de química psicológica.

    A fama que o sr. Lopes-Vieira tem, ex-ganhou-a dignamente, porque foi com uma obra bela, e por vezes grande, que se enfameceu. Foi com moeda de lei que adquiriu o incenso com que se estonteou. Como muitos outros, e em parte pela mesma razão turibular, criou fama e deitou-se a dormir. E visto que estes livros para crianças e parte de outros, recentes, são o seu sono, bem se pode dizer que dorme como uma besta.

    Mas voltemos, acusadoramente, ao caso.

    O sr. Lopes-Vieira é um criminoso. É-o por três razões. Está estragando, com o seu gato-por-lebre de simplicidade, o rudimentar senso estético de crianças, que, mesmo que sejam só duas, são classificáveis de inúmeras, ante o horror do crime. — Está tornando ridículos assuntos que conviria tratar com uma decência que a estupidez mesmo quando involuntária, nunca tem. Pobres cães nossos amigos tinhosos de Lopes-Vieira! Pobre Bartolomeu Dias, tão embobecido de pedagogia! — E, por último, para tudo de nocivo ser, o sr. Lopes-Vieira é até antipedagógico, porque quem escreve

    Que era de antes o mar? Um quarto escuro
    Onde os meninos tinham medo de ir

    merece uma inquisição de professores.

    Educados na estupidez pela leitura das obras infantis do sr. Lopes-Vieira, levados ao antipatriotismo pelo inevitável desdém que um livro como o Bartolomeu Marinheiro leva a ter pelo navegador que ali aparece vestido de bebé de Carnaval, cheios de fobias por lhes terem sido metaforizadas na infância coisas como que um quarto escuro é logicamente terrível, os homens de Portugal de amanhã (adotados escolarmente, como tudo o que dizemos neste artigo leva a crer que sejam, os livros do sr. Lopes-Vieira) terão por Shakespeare o sr. Júlio Dantas, por Shelley o sr. Lopes-Vieira... e serão espanhóis.

    Porque em que diabo pode vir a dar uma nação de parvos, de antipatriotas e de panofóbicos senão em deixar de ser nação?

    Fernando Pessoa.

  • Nomes

    • Afonso Lopes Vieira
    • Bartolomeu Dias
    • Fernando Pessoa
    • José Nunes da Mata
    • João de Deus
    • Júlio Dantas
    • Percy Bysshe Shelley
    • S. Francisco de Assis
    • William Shakespeare

    Títulos

    • Ar Livre
    • Bartholomeu Marinheiro
    • Engeitadinha
    • O Poeta Saudade