ODES
LIVRO PRIMEIRO
I
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo innumero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
D’elles se plasma torna, e á arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nella.
II
Essas volucres amo, Lydia, rosas,
Que em o dia em que nascem.
Em esse dia morrem.
A luz para ellas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apollo deixe
O seu curso visivel.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lydia, voluntariamente
Que ha noite antes e após
O pouco que durâmos.
III
Em Eolo captivos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Aguas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Si aqui de um manso mar meu fundo indicio
Trez ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Echoa de Saturno?
IV
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiraveis pincaros,
Perennes sem ter flores.
Só de acceitar tenhamos a sciencia,
E, emquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha comnosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, ás luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E reflectindo um pouco.
V
Como si cada beijo
Fôra de despedida,
Minha Chloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No hombro a mão, que chama
Á barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mutuos fomos
E a alheia somma universal da vida.
VI
Esse rythmo das nymphas repetido,
Quando sob o arvoredo
Batem o som da dança,
Vós na alva praia relembrae, fazendo,
Que scura a spuma deixa; vós, infantes,
Que inda não tendes cura
De ter cura, reponde
Ruidosa a roda, emquanto arqueia Apollo,
Como um ramo alto, a curva azul que doura,
E a perenne maré
Flue, enchente ou vasante.
VII
Da altura, e á sorte deixo,
E a suas leis, o verso;
Que, quando é alto e regio o pensamento,
Subdita a phrase o busca
E o scravo rythmo o serve.
VIII
E a juventude nella! Ah Chloe, Chloe,
Si não amo, nem bebo,
Nem sem querer não penso,
Pesa-me a lei inimploravel, doe-me
A hora invita, o tempo que não cessa,
E aos ouvidos me sobe
Dos juncos o ruido
Na occulta margem onde os lirios frios
Da infera leiva crescem, e a corrente
Não sabe onde é o dia,
Sussurro gemebundo.
IX
Coroae-me em verdade
De rosas —
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tam cedo!
Coroae-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
X
Não frue quem mente frue. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
Si não houver em mim poder que vença
As parcas trez e as moles do futuro,
Já me dêem os deuses
O poder de sabe-lo;
E a belleza, increavel por meu sestro,
Eu gose externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte sécca.
XI
Em qualquer hora pode succeder-nos
O que nos tudo mude.
Fora do conhecido é extranho o passo
Que proprio damos. Graves numes guardam
As lindas do que é uso.
Não somos deuses: cegos, receemos,
E a parca dada vida anteponhamos
Á novidade, abysmo.
XII
Porque me negas o que te não peço.
Tempo ha para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor ! Se te colher avaro
A mão da infausta sphynge, tu perenne
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não déste.
XIII
Campos, campos, e soffro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira antesinto
Que serei não sentindo,
Ou só quanto o que ignoro
Me incognito ministre.
E menos ao instante
Chóro, que a mim futuro,
Subdito ausente e nullo
Do universal destíno.
XIV
Flores o verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais d’elle o infecundo abysmo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
Á clara luz superna
A presença vivída.
Não mais; e a prole a que, pensando, dera
A vida da razão, em vão o chama,
Que as nove chaves fecham
Da Styge irreversivel.
O que foi como um deus entre os que cantam,
O que do Olympo as vozes, que chamavam,
Scutando ouviu, e, ouvindo,
Entendeu, hoje é nada.
Tecei embora as, que teceis, grinaldas.
Quem coroaes, não coroando a elle?
Votivas as deponde,
Funebres sem ter culto.
Fique, porém, livre da leiva e do Orco,
A fama; e tu, que Ulysses erigira,
Tu, em teus septe montes,
Orgulha-te materna,
Egual, desde elle, ás septe que contendem
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
Ou heptapyla Thebas,
Ogygia mãe de Pindaro.
XV
Ora, solemne, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, gosa incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Per que consilios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as hervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica
Filhos, diversa e sua.
XVI
Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu não vejo.
Se não pesar na vida melhor goso
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos unisonos á sorte
Que houver, até que chegue
A hora do barqueiro.
XVII
Que figuras futuro, ou prometter-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não sperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ella de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abysmo?
XVIII
Lagrimas para as flores d’elle emprego
Na lembrança invertida
De quando hei de perdel-as.
Transpostos os portaes irreparaveis
De cada anno, me anticipo a sombra
Em que hei de errar, sem flores,
No abysmo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se commigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra.
XIX
Prazer, mas devagar,
Lydia, que a sorte áquelles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não dispertemos, onde dorme, a erynnis
Que cada goso trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gosemos escondidos.
A sorte inveja, Lydia. Emmudeçamos.
XX
Teus infecundos, trabalhosos dias
Em feixes de hirta lenha,
Sem illusão a vida.
A tua lenha é só peso que levas
Para onde não tens fogo que te aqueça.
Nem soffrem peso aos hombros
As sombras que seremos.
Para folgar não folgas; e, se legas,
Antes legues o exemplo, que riquezas,
De como a vida basta
Curta, nem tambem dura.
Pouco usamos do pouco que mal temos.
A obra cança, o ouro não é nosso.
De nós a mesma fama
Ri-se, que a não veremos
Quando, acabados pelas parcas, formos,
Vultos solemnes, de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal —
O barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços da frieza stygia
E o regaço insaciavel
Da patria de Plutão.
RICARDO REIS