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Episódios (A Múmia, Ficções do Interlúdio)

Fernando Pessoa

Portugal Futurista, novembro de 1917, pp. 21-23.

  • [21]

    EPISODIOS

    A Mumia

    I

    Andei leguas de sombra
    Dentro em meu pensamento.
    Floresceu ás avessas
    Meu ocio com sem-nexo,
    E apagaram-se as lampadas
    Na alcova cambaleante.
    Tudo prestes se volve
    Um deserto macio
    Visto pelo meu tacto
    Dos velludos da alcova,
    Não pela minha vista.
    Ha um oasis no Incerto
    E, como uma suspeita
    De luz por não-ha-frinchas,
    Passa uma caravana.
    [22]
    Esquece-me de subito
    Como é o espaço, e o tempo
    Em vez de horizontal
    É vertical.

    A alcova


    Desce não sei por onde
    Até não me encontrar.
    Ascende um leve fumo
    Das minhas sensações.
    Deixo de me incluir
    Dentro de mim. Não ha
    Cá-dentro nem lá-fóra.
    E o deserto está agora
    Virado para baixo.

    A noção de mover-me
    Esqueceu-se do meu nome.
    Na alma meu corpo pesa-me.
    Sinto-me um reposteiro
    Pendurado na sala
    Onde jaz alguem morto.
    Qualquer cousa cahiu
    E tiniu no infinito.

    II

    Na sombra Cleopatra jaz morta.
    Chove.
    Embandeiraram o barco de maneira errada.
    Chove sempre.
    Para que olhas tu a cidade longinqua?
    Tua alma é a cidade longinqua.
    Chove friamente.
    E quanto á mãe que embala ao collo um filho morto —
    Todos nós embalamos ao collo um filho morto.
    Chove, chove.
    O sorriso triste que sobra a teus labios cansados,
    Vejo o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anneis.
    Porque é que chove?

    III

    De quem é o olhar
    Que espreita por meus olhos?
    Quando penso que vejo,
    Quem continúa vendo
    Emquanto estou pensando?
    Por que caminhos seguem,
    Não os meus tristes passos,
    Mas a realidade
    De eu ter passos commigo?
    Ás vezes, na penumbra
    Do meu quarto, quando eu
    Para mim proprio mesmo
    Em alma mal existo,
    Toma um outro sentido
    Em mim o Universo —
    É uma nodoa esbatida
    De eu ser consciente sobre
    Minha idéa das cousas.
    Se accenderem as velas
    E não houver apenas
    A vaga luz de fóra —
    Não sei que candieiro
    Acceso onde na rua —
    Terei foscos desejos
    De nunca haver mais nada
    No Universo e na Vida
    De que o obscuro momento
    Que é minha vida agora:
    Um momento affluente
    Dʼum rio sempre a ir
    Esquecer-se de ser,
    Espaço mysterioso
    Entre espaços desertos
    Cujo sentido é nullo
    E sem ser nada a nada.
    E assim a hora passa
    Metaphysicamente.

    IV

    As minhas ansiedades cahem
    Por uma escada abaixo.
    Os meus desejos balouçam-se
    Em meio de um jardim vertical.
    Na Mumia a posição é absolutamente exacta.
    Musica longinqua,
    Musica excessivamente longinqua;
    Para que a Vida passe
    E colher esqueça aos gestos.

    V

    Porque abrem as cousas alas para eu passar?
    Tenho medo de passar entre ellas, tão paradas conscientes
    Tenho medo de as deixar atraz de mim a tirarem a Mascara
    Mas ha sempre cousas atraz de mim.
    Sinto a sua ausencia de olhos fitar-me, e estremeço.
    Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
    Fallam commigo sem voz de dizerem-me as cadeiras
    Os desenhos do panno da meza teem vida, cada um é um abysmo
    Luze a sorrir com visiveis labios invisiveis
    A porta abrindo-se conscientemente
    Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se
    De onde é que estão olhando para mim?
    Que cousas incapazes de olhar estão olhando para mim
    Quem espreita de tudo?
    As arestas fitam-me.
    Sorriem realmente as paredes lisas.
    Sensação de ser só a minha espinha.
    As espadas.
    [23]

    FICÇÕES DO INTERLUDIO

    I

    Plenilunio

    As horas pela alameda
    Arrastam vestes de seda,
    Vestes de seda sonhada
    Pela alameda alongada
    Sob o azular do luar...
    E ouve-se no ar a expirar —
    A expirar mas nunca expira —
    Uma flauta que delira;
    Que é mais a idéa de ouvil-a
    Que ouvil-a quasi tranquilla
    Pelo ar a ondear e a ir...
    Silencio a tremeluzir...

    II

    Saudade dada

    Em horas inda louras, lindas
    Clorindas e Belindas, brandas,
    Brincam no tempo das berlindas,
    As vindas vendo das varandas.
    De onde ouvem vir a rir as vindas
    Fitam a fio as frias bandas.
    Mas em torno á tarde se entorna
    A atordoar o ar que arde
    Que a eterna tarde já não torna!
    E em tom de atoarda todo o alarde
    Do adornado ardor transtorna
    No ar de torpor da tarda tarde.
    E há nevoentos desencantos
    Dos encantos dos pensamentos
    Nos santos lentos dos recantos
    Dos bentos cantos dos conventos...
    Prantos de intentos, lentos, tantos
    Que encantam os attentos ventos.

    III

    Pierrot bebado

    Nas ruas da feira,
    Da feira deserta,
    Só a lua cheia
    Branqueia e clareia
    As ruas da feira
    Na noite entreaberta.
    Só a lua alva
    Branqueia e clareia
    A paysagem calva
    De abandono e alva
    Alegria alheia.
    Bebada branqueia
    Como pela areia
    Nas ruas da feira,
    Da feira deserta,
    Na noite já cheia
    De sombra entreaberta.
    A lua branqueia
    Nas ruas da feira
    Deserta e incerta...

    IV

    Minuete invisivel

    Ellas são vaporosas,
    Pallidas sombras, as rosas
    Nadas da hora lunar..
    Veem, aereas, dançar
    Como perfumes soltos
    Entre os canteiros e os buxos...
    Chora no som dos repuxos
    O rhythmo que ha nos seus vultos...
    Passam e agitam a brisa...
    Pallida, a pompa indecisa
    Da sua flebil demora
    Paira em aureola á hora...
    Passam nos rhythmos da sombra...
    Ora é uma folha que tomba,
    Ora uma brisa que treme
    Sua leveza solemne...
    E assim vão indo, delindo
    Seu perfil unico e lindo,
    Seu vulto feito de todas,
    Nas alamedas, em rodas,
    No jardim livido e frio...
    Passam sósinhas, a fio,
    Como um fumo indo, a rarear,
    Pelo ar longinquo e vazio,
    Sob o, disperso pelo ar,
    Pallido pallio lunar...

    V

    Hiemal

    Balladas de uma outra terra, alliadas
    Ás saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
    Retinem lividas ainda aos ouvidos
    Dos luares das altas noites aladas...
    Pelos canaes barcas erradas
    Segredam-se rumos descridos...
    E tresloucadas ou casadas com o som das balladas,
    As fadas são bellas, e as estrellas
    São dʼellas... Eil-as alheadas...
    E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
    Nos canaes fataes eguaes de erradas,
    As barcas parcas das fadas,
    Das fadas aladas e hiemaes
    E caladas...
    Toadas afastadas, irreaes, de balladas...
    Ais...

    Fernando Pessoa.

    O poema “Minuete Invisivel“, aqui incluído em “Ficções do Interlúdio”, foi republicado em Diário dos Açores, 17 de junho de 1930, com algumas diferenças ortográficas.
  • [21]

    EPISÓDIOS

    A Múmia

    I

    Andei léguas de sombra
    Dentro em meu pensamento.
    Floresceu às avessas
    Meu ócio com sem-nexo,
    E apagaram-se as lâmpadas
    Na alcova cambaleante.
    Tudo prestes se volve
    Um deserto macio
    Visto pelo meu tato
    Dos veludos da alcova,
    Não pela minha vista.
    Há um oásis no Incerto
    E, como uma suspeita
    De luz por não-há-frinchas,
    Passa uma caravana.
    [22]
    Esquece-me de súbito
    Como é o espaço, e o tempo
    Em vez de horizontal
    É vertical.

    A alcova


    Desce não sei por onde
    Até não me encontrar.
    Ascende um leve fumo
    Das minhas sensações.
    Deixo de me incluir
    Dentro de mim. Não há
    Cá-dentro nem lá-fora.
    E o deserto está agora
    Virado para baixo.

    A noção de mover-me
    Esqueceu-se do meu nome.
    Na alma meu corpo pesa-me.
    Sinto-me um reposteiro
    Pendurado na sala
    Onde jaz alguém morto.
    Qualquer coisa caiu
    E tiniu no infinito.

    II

    Na sombra Cleópatra jaz morta.
    Chove.
    Embandeiraram o barco de maneira errada.
    Chove sempre.
    Para que olhas tu a cidade longínqua?
    Tua alma é a cidade longínqua.
    Chove friamente.
    E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto —
    Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
    Chove, chove.
    O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,
    Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
    Porque é que chove?

    III

    De quem é o olhar
    Que espreita por meus olhos?
    Quando penso que vejo,
    Quem continua vendo
    Enquanto estou pensando?
    Por que caminhos seguem,
    Não os meus tristes passos,
    Mas a realidade
    De eu ter passos comigo?
    Às vezes, na penumbra
    Do meu quarto, quando eu
    Para mim próprio mesmo
    Em alma mal existo,
    Toma um outro sentido
    Em mim o Universo —
    É uma nódoa esbatida
    De eu ser consciente sobre
    Minha ideia das coisas.
    Se acenderem as velas
    E não houver apenas
    A vaga luz de fora —
    Não sei que candeeiro
    Aceso onde na rua —
    Terei foscos desejos
    De nunca haver mais nada
    No Universo e na Vida
    De que o obscuro momento
    Que é minha vida agora:
    Um momento afluente
    Dum rio sempre a ir
    Esquecer-se de ser,
    Espaço misterioso
    Entre espaços desertos
    Cujo sentido é nulo
    E sem ser nada a nada.
    E assim a hora passa
    Metafisicamente.

    IV

    As minhas ansiedades caem
    Por uma escada abaixo.
    Os meus desejos balouçam-se
    Em meio de um jardim vertical.
    Na Múmia a posição é absolutamente exata.
    Música longínqua,
    Música excessivamente longínqua;
    Para que a Vida passe
    E colher esqueça aos gestos.

    V

    Porque abrem as coisas alas para eu passar?
    Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes
    Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara
    Mas há sempre coisas atrás de mim.
    Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.
    Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
    Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras
    Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo
    Luz a sorrir com visíveis lábios invisíveis
    A porta abrindo-se conscientemente
    Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se
    De onde é que estão olhando para mim?
    Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim
    Quem espreita de tudo?
    As arestas fitam-me.
    Sorriem realmente as paredes lisas.
    Sensação de ser só a minha espinha.
    As espadas.
    [23]

    FICÇÕES DO INTERLÚDIO

    I

    Plenilúnio

    As horas pela alameda
    Arrastam vestes de seda,
    Vestes de seda sonhada
    Pela alameda alongada
    Sob o azular do luar...
    E ouve-se no ar a expirar —
    A expirar mas nunca expira —
    Uma flauta que delira;
    Que é mais a ideia de ouvi-la
    Que ouvi-la quase tranquila
    Pelo ar a ondear e a ir...
    Silêncio a tremeluzir...

    II

    Saudade dada

    Em horas ainda louras, lindas
    Clorindas e Belindas, brandas,
    Brincam no tempo das berlindas,
    As vindas vendo das varandas.
    De onde ouvem vir a rir as vindas
    Fitam a fio as frias bandas.
    Mas em torno à tarde se entorna
    A atordoar o ar que arde
    Que a eterna tarde já não torna!
    E em tom de atoarda todo o alarde
    Do adornado ardor transtorna
    No ar de torpor da tarda tarde.
    E há nevoentos desencantos
    Dos encantos dos pensamentos
    Nos santos lentos dos recantos
    Dos bentos cantos dos conventos...
    Prantos de intentos, lentos, tantos
    Que encantam os atentos ventos.

    III

    Pierrot bêbado

    Nas ruas da feira,
    Da feira deserta,
    Só a lua cheia
    Branqueia e clareia
    As ruas da feira
    Na noite entreaberta.
    Só a lua alva
    Branqueia e clareia
    A paisagem calva
    De abandono e alva
    Alegria alheia.
    Bêbada branqueia
    Como pela areia
    Nas ruas da feira,
    Da feira deserta,
    Na noite já cheia
    De sombra entreaberta.
    A lua branqueia
    Nas ruas da feira
    Deserta e incerta...

    IV

    Minuete invisível

    Elas são vaporosas,
    Pálidas sombras, as rosas
    Nadas da hora lunar..
    Vêm, aéreas, dançar
    Como perfumes soltos
    Entre os canteiros e os buxos...
    Chora no som dos repuxos
    O ritmo que há nos seus vultos...
    Passam e agitam a brisa...
    Pálida, a pompa indecisa
    Da sua flébil demora
    Paira em auréola à hora...
    Passam nos ritmos da sombra...
    Ora é uma folha que tomba,
    Ora uma brisa que treme
    Sua leveza solene...
    E assim vão indo, delindo
    Seu perfil único e lindo,
    Seu vulto feito de todas,
    Nas alamedas, em rodas,
    No jardim lívido e frio...
    Passam sozinhas, a fio,
    Como um fumo indo, a rarear,
    Pelo ar longínquo e vazio,
    Sob o, disperso pelo ar,
    Pálido pálio lunar...

    V

    Hiemal

    Baladas de uma outra terra, aliadas
    Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,
    Retinem lívidas ainda aos ouvidos
    Dos luares das altas noites aladas...
    Pelos canais barcas erradas
    Segredam-se rumos descridos...
    E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,
    As fadas são belas, e as estrelas
    São delas... Ei-las alheadas...
    E são fumos os rumos das barcas sonhadas,
    Nos canais fatais iguais de erradas,
    As barcas parcas das fadas,
    Das fadas aladas e hiemais
    E caladas...
    Toadas afastadas, irreais, de baladas...
    Ais...

    Fernando Pessoa.

    O poema “Minuete Invisivel“, aqui incluído em “Ficções do Interlúdio”, foi republicado em Diário dos Açores, 17 de junho de 1930, com algumas diferenças ortográficas.