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Do ʺLivro do Desassossegoʺ (ʺAmo pelas tardes demoradas de verãoʺ)

Bernardo Soares

A Revista da Solução Editora 2, março de 1929, p. 25.

  • TRECHO

    DO ʺLIVRO DO DESASOCEGOʺ, COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA

     

    AMO, pelas tardes demoradas de verão, o socego da cidade baixa, e sobretudo aquelle socego que o contraste accentua na parte que o dia mergulha em mais bulicio. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfandega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfandega cessa, toda a linha separada dos caes quedos — tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjuncto. Vivo uma era anterior áquela em que vivo; goso de sentir me coevo de Cesario Verde, e tenho em mim, não outros versos como os d'elle, mas a substancia egual à dos versos que fôram dʼelle. Por alli arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a d'essas ruas. De dia ellas são cheias de um bulicio que não quere dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulicio que não quere dizer nada. Eu de dia sou nullo, e de noite sou eu. Não ha differença entre mim e as ruas para o lado da Alfandega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essencia das cousas. Ha um destino egual, porque é abstracto, para os homens e para as cousas — uma designação egualmente indifferente na algebra do mysterio.

     

    Mas ha mais alguma cousa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma á mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma cousa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus proprios sonhos se me erguem em cousas, não para me substituirem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fóra, como o electrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que cousa, que se destaca, toada arabe, como um repuxo subito, da monotonia do entardecer!

    FERNANDO PESSOA

  • TRECHO

    DO ʺLIVRO DO DESASSOSSEGOʺ, COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA

     

    AMO, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos — tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo; gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os dele, mas a substância igual à dos versos que foram dele. Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e de noite sou eu. Não há diferença entre mim e as ruas para o lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha ante o que é a essência das coisas. Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.

     

    Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em coisas, não para me substituírem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador noturno, de não sei que coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito, da monotonia do entardecer!

    FERNANDO PESSOA

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    • Cesário Verde
    • Fernando Pessoa