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O Andaime

Fernando Pessoa

Presença 31-32, março — junho de 1931, p. 10.

  • O Andaime

    O tempo que eu hei sonhado
    Quantos anos foi de vida!
    Ah, quanto do meu passado
    Foi só a vida mentida
    De um futuro imaginado!
    Aqui à beira do rio
    Sossego sem ter razão.
    Este seu correr vazio
    Figura, anónimo e frio,
    A vida vivida em vão.
    A sprança que pouco alcança!
    Que desejo vale o ensejo?
    E uma bola de criança
    Sobe mais que a minha sprança,
    Rola mais que o meu desejo.
    Ondas do rio, tão leves
    Que não sois ondas sequer,
    Horas, dias, anos, breves
    Passam — verduras ou neves
    Que o mesmo sol faz morrer.
    Gastei tudo que não tinha.
    Sou mais velho do que sou.
    A ilusão, que me mantinha,
    Só no palco era rainha:
    Despiu-se, e o reino acabou.
    Leve som das águas lentas,
    Gulosas da margem ida,
    Que lembranças sonolentas
    De esperanças nevoentas!
    Que sonhos o sonho e a vida!
    Que fiz de mim? Encontrei-me
    Quando estava já perdido.
    Impaciente deixei-me
    Como a um louco que teime
    No que lhe foi desmentido.
    Som morto das águas mansas
    Que correm por ter que ser,
    Leva não só as lembranças,
    Mas as mortas esperanças —
    Mortas, porque hão de morrer.
    Sou já o morto futuro.
    Só um sonho me liga a mim —
    O sonho atrasado e obscuro
    Do que eu devera ser — muro
    Do meu deserto jardim.
    Ondas passadas, levai-me
    Para o olvido do mar!
    Ao que não serei legai-me,
    Que cerquei com um andaime
    A casa por fabricar.

    FERNANDO PESSOA

  • O Andaime

    O tempo que eu hei sonhado
    Quantos anos foi de vida!
    Ah, quanto do meu passado
    Foi só a vida mentida
    De um futuro imaginado!
    Aqui à beira do rio
    Sossego sem ter razão.
    Este seu correr vazio
    Figura, anónimo e frio,
    A vida vivida em vão.
    A esperança que pouco alcança!
    Que desejo vale o ensejo?
    E uma bola de criança
    Sobe mais que a minha esperança,
    Rola mais que o meu desejo.
    Ondas do rio, tão leves
    Que não sois ondas sequer,
    Horas, dias, anos, breves
    Passam — verduras ou neves
    Que o mesmo sol faz morrer.
    Gastei tudo que não tinha.
    Sou mais velho do que sou.
    A ilusão, que me mantinha,
    Só no palco era rainha:
    Despiu-se, e o reino acabou.
    Leve som das águas lentas,
    Gulosas da margem ida,
    Que lembranças sonolentas
    De esperanças nevoentas!
    Que sonhos o sonho e a vida!
    Que fiz de mim? Encontrei-me
    Quando estava já perdido.
    Impaciente deixei-me
    Como a um louco que teime
    No que lhe foi desmentido.
    Som morto das águas mansas
    Que correm por ter que ser,
    Leva não só as lembranças,
    Mas as mortas esperanças —
    Mortas, porque hão de morrer.
    Sou já o morto futuro.
    Só um sonho me liga a mim —
    O sonho atrasado e obscuro
    Do que eu devera ser — muro
    Do meu deserto jardim.
    Ondas passadas, levai-me
    Para o olvido do mar!
    Ao que não serei legai-me,
    Que cerquei com um andaime
    A casa por fabricar.

    FERNANDO PESSOA