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De um ʺLivro do Desassossegoʺ (ʺDurei horas incógnitasʺ)

Bernardo Soares

Presença 27, junho ― julho de 1930, p. 9.

  • TRECHO

    DE UM LIVRO DO DESASOCEGO COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA

    DUREI horas incognitas, momentos successivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sòsinha do mar. Todos os pensamentos, que teem feito viver homens, todas as emoções, que os homens teem deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada á beira-mar.

    Soffri em mim, commigo, as aspirações de todas as eras, e commigo passearam, à beira ouvida do mar, os desasocegos de todos os tempos. O que os homens quizeram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguem disse — de tudo isto se formou a alma sensivel com que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes extranharam no outro amante, o que a mulher occultou, sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve fórma só num sorriso ou numa opportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta — tudo isso, no meu passeio á beira-mar, foi commigo e voltou commigo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento que me fazia dormil-o.

    Somos quem não somos, e a vida é prompta e triste. O som das ondas á noite é um som da noite; e quantos o ouviram na propria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lagrimas choraram os que obtiveram, que lagrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio á beira-mar, se me tornou o segredo da noite e a confidência do abysmo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção!

    Aquillo que se perdeu, aquillo que se deveria ter querido, aquillo que se obteve e satisfez por erro, o que amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando-o por tel-o perdido, que o não haviamos amado; o que julgavamos que pensavamos quando sentiamos; o que era uma memória e criamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio á beira-mar...

    Quem sabe sequer o que pensa, ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a música suggere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos, e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um salivar audivel pela praia invisivel fóra.

    Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorporeo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio nocturno á beira-mar!

    FERNANDO PESSOA

  • TRECHO

    DE UM LIVRO DO DESASSOSSEGO COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA

    DUREI horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar. Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar.

    Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse — de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes estranharam no outro amante, o que a mulher ocultou, sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta — tudo isso, no meu passeio à beira-mar, foi comigo e voltou comigo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento que me fazia dormi-lo.

    Somos quem não somos, e a vida é pronta e triste. O som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira-mar, se me tornou o segredo da noite e a confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção!

    Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando-o por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentiamos; o que era uma memória e criamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso noturno do meu passeio à beira-mar...

    Quem sabe sequer o que pensa, ou o que deseja? Quem sabe o que é para si mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos, e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.

    Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio noturno à beira-mar!

    FERNANDO PESSOA

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