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A origem do conto do vigário

Fernando Pessoa

O ʺNotíciasʺ Ilustrado , 18 de agosto de 1929.

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    A origem do CONTO do VIGARIO

    Como scena eminentemente lisboeta, para o filme «Lisboa», Gil Ferreira, Alfredo Ruas e Holbeche Bastos interpretam o «Conto do Vigario», bem conhecido: Um alemtejano que desembarca. Um dos vigaristas deixa cair uma corrente falsa. O alemtejano apanha-a, o outro vigarista que vem no encalço propõe-lhe dividirem o achado ao meio – e vão ver se é de oiro. Para isso tiram a «argolinha» e vão ver. Essa é claro, é de oiro. O «pacovio» conclue que toda a corrente é de oiro e dá ao vigarista a maquia que ele lhe pede. É claro que aqui «alemtejano» é um simbolo – pois bem pode suceder que o «pacóvio» seja de outro sitio e o «vigarista esperto» seja de Evora.

    O nosso colaborador Fernando Pessoa, explica, a seguir, a origem do termo «Conto do Vigario»...

    VIVIA, ha já bastantes anos, algures num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador e negociante de gado chamado Manuel Peres Vigario.

    Chegou uma vez ao pé dêle um fabricante de notas falsas e disse-lhe: «Sr. Vigario, ainda tenho aqui umas notasínhas de cem mil reis que me falta passar. O sr. quere? Largo-lhas por vinte mil reis cada uma.»

    «Deixe ver», disse o Vigario; e depois, reparando logo que eram imperfeitissimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.»

    O outro, porém, insistiu; Vigario, regateando, cedeu um pouco. Por fim fez-se negocio de vinte notas, a dez mil reis cada uma.

    Sucedeu que dalí a dias tinha o Vigario que pagar a dois irmãos, negociantes de gado como êle, o saldo de uma conta, no valor certo de um conto de reis. No primeiro dia da feira, em que se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna obscura da localidade, quando surgiu á porta, cambaleante de bebado, o Manuel Peres Vigario. Sentou-se á mesa dêles e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de alguma conversa, pouco inteligivel da sua parte, lembrou que tinha um pagamento a fazer-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil reis. Os irmãos disseram que não se importavam; mas, como nêsse momento a carteira se entréabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um [5]olhar rapido, a atenção do irmão para as notas», que se via que eram de cem mil reis. Houve então uma troca de olhares entre os dois irmãos.

    O Manuel Peres contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem perdeu tempo em olhar para elas. O Vigario continuou a conversar, e, varias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria um recibo. Não era costume mas nenhum dos irmãos fez questão. O Manuel Peres disse que queria ditar o recibo, para as coisas ficarem todas certas. Os outros anuiram a este capricho de bebado. Então o Manuel Peres ditou como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano «estando nós a jantar» (e por ali fóra com toda a prolixidade estupida do bebado), tinham êles recebido de Manuel Peres Vigario, do lugar de qualquer coisa, a quantia de um conto de reis, em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, selado e assinado. O Vigario meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e por fim foi-se embora.

    Quando, no dia seguinte, houve ocasião de se trocar a primeira nota de cem mil reis, o indivi[7]duo, que ia a recebê-la, rejeitou-a logo por falsissima. Rejeitou do mesmo modo a segunda e a terceira. E os dois irmãos, olhando então bem para as notas, verificaram que nem a cegos se poderiam passar.

    Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira que o havia colhido providencialmente no dia do pagamento e o havia feito exigir um recibo estupido.

    Lá o dizia o recibo: «um conto de réis “em notas de cinquenta mil reis”». Se os dois irmãos tinham notas de cem, não era dêle, Vigario, que as tinham recibido. Ele lembrava-se bem, apesar de bebado, de ter pago vinte notas, e os irmãos não eram (dizia o Manuel Peres) homens que lhe fôssem aceitar notas de cem por notas de cinquenta, porque eram homens honrados e de bom nome em todo o concelho.

    E, como era de justiça, o Manuel Peres Vigario foi mandado em paz.

    O caso, porém, não podia ficar secreto. Por um lado ou por outro, começou a contar-se, e espalhou-se. E a historia do «conto de reis do Manuel Peres Vigario», passou a ser uma expressão corrente na lingua portuguesa.

    FPF[ernando] P[essoa]

    Este texto é uma republicação de ʺUm grande portuguêsʺ com alterações consideráveis, a começar pelo título, e com um parágrafo final muito diferente, pelo que decidimos transcrever ambos como versões autónomas.
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    A origem do CONTO do VIGÁRIO

    Como cena eminentemente lisboeta, para o filme «Lisboa», Gil Ferreira, Alfredo Ruas e Holbeche Bastos interpretam o «Conto do Vigário», bem conhecido: Um alentejano que desembarca. Um dos vigaristas deixa cair uma corrente falsa. O alentejano apanha-a, o outro vigarista que vem no encalço propõe-lhe dividirem o achado ao meio ― e vão ver se é de oiro. Para isso tiram a «argolinha» e vão ver. Essa é claro, é de oiro. O «pacóvio» conclui que toda a corrente é de oiro e dá ao vigarista a maquia que ele lhe pede. É claro que aqui «alentejano» é um símbolo ― pois bem pode suceder que o «pacóvio» seja de outro sítio e o «vigarista esperto» seja de Évora.

    O nosso colaborador Fernando Pessoa, explica, a seguir, a origem do termo «Conto do Vigário»...

    VIVIA, há já bastantes anos, algures num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador e negociante de gado chamado Manuel Peres Vigário.

    Chegou uma vez ao pé dele um fabricante de notas falsas e disse-lhe: «Sr. Vigário, ainda tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O sr. quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.»

    «Deixe ver», disse o Vigário; e depois, reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse; «isso nem a cegos se passa.»

    O outro, porém, insistiu; Vigário, regateando, cedeu um pouco. Por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.

    Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a dois irmãos, negociantes de gado como ele, o saldo de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No primeiro dia da feira, em que se deveria efetuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna obscura da localidade, quando surgiu à porta, cambaleante de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de alguma conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha um pagamento a fazer-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Os irmãos disseram que não se importavam; mas, como nesse momento a carteira se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um [5]olhar rápido, a atenção do irmão para as notas», que se via que eram de cem mil réis. Houve então uma troca de olhares entre os dois irmãos.

    O Manuel Peres contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem perdeu tempo em olhar para elas. O Vigário continuou a conversar, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria um recibo. Não era costume mas nenhum dos irmãos fez questão. O Manuel Peres disse que queria ditar o recibo, para as coisas ficarem todas certas. Os outros anuíram a este capricho de bêbado. Então o Manuel Peres ditou como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano «estando nós a jantar» (e por ali fora com toda a prolixidade estúpida do bêbado), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, a quantia de um conto de réis, em notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, selado e assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e por fim foi-se embora.

    Quando, no dia seguinte, houve ocasião de se trocar a primeira nota de cem mil réis, o indiví[7]duo, que ia a recebê-la, rejeitou-a logo por falsíssima. Rejeitou do mesmo modo a segunda e a terceira. E os dois irmãos, olhando então bem para as notas, verificaram que nem a cegos se poderiam passar.

    Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira que o havia colhido providencialmente no dia do pagamento e o havia feito exigir um recibo estúpido.

    Lá o dizia o recibo: «um conto de réis “em notas de cinquenta mil réis”». Se os dois irmãos tinham notas de cem, não era dele, Vigário, que as tinham recebido. Ele lembrava-se bem, apesar de bêbado, de ter pago vinte notas, e os irmãos não eram (dizia o Manuel Peres) homens que lhe fossem aceitar notas de cem por notas de cinquenta, porque eram homens honrados e de bom nome em todo o concelho.

    E, como era de justiça, o Manuel Peres Vigário foi mandado em paz.

    O caso, porém, não podia ficar secreto. Por um lado ou por outro, começou a contar-se, e espalhou-se. E a história do «conto de réis do Manuel Peres Vigário», passou a ser uma expressão corrente na língua portuguesa.

    FPF[ernando] P[essoa]

    Este texto é uma republicação de ʺUm grande portuguêsʺ com alterações consideráveis, a começar pelo título, e com um parágrafo final muito diferente, pelo que decidimos transcrever ambos como versões autónomas.
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    • Gil Ferreira
    • Holbeche Bastos
    • Manuel Peres Vigário