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A regulamentação do jogo

Fernando Pessoa

Diário de Notícias , 26 de abril de 1927.

  • A REGULAMENTAÇÃO DO JOGO

    As verdadeiras bases do problema — Simplicidade da sua solução

    O problema geral do jogo de azar, e o problema particular da sua regulamentação, têm sido, sempre, postos erradamente — o primeiro porque nunca se estudou, o segundo porque nunca se estudou o primeiro.

    Não é preciso, porém, ter um conceito assente e seguro do que é o jogo de azar, socialmente considerado, para se poder tratar do problema da sua regulamentação. Basta reparar que, sobre a natureza social do jogo, ha três hipóteses possiveis, e que o principio da regulamentação convem apenas a uma delas.

    Partamos, contudo, do principio de que se quere regulamentar o jogo, e consideremos esse principio em relação com as três hipoteses que se podem formular sobre a natureza social dele.

    Sobre o jogo, socialmente considerado, ha três teorias possiveis. Ou é um vicio da natureza de um crime, como o assassinio e o roubo; ou é um vicio da simples natureza de uma excitação, como o alcool e o tabaco; ou não é um vicio, mas um simples passatempo ou distracção.

    *

    Se o jogo é um vicio da natureza de um crime, deve ser severamente reprimido, nem se lhe deve aplicar legislação que não seja a penal. O não se poder abolir nada significa: tambem o assassinio e o roubo se não podem abolir. Mas, nesta hipótese, deve o Estado suprimir as lotarias e os sorteios de obrigações. Se o jogo de azar é, em si, um crime, não pode haver distinção entre as maneiras de o cometer, nem entre as aplicações do produto da comissão. A lei não distingue, no assassinio, entre o que é praticado com o barulho do tiro, e o que é realizado com o silencio do veneno. E, onde ha crime, o fim não justifica os meios, pelo menos perante a lei, isto é, perante o Estado. Se o que é feito em favor do Estado ou da caridade, por isso mesmo se justificasse, nada obstaria a que o Estado estabelecesse uma organização tributariamente patriotica de trafico de brancas (ou de pretas), ou lançasse, em favor dos asilos e das casas de beneficencia, um imposto de transacções sôbre os carteiristas e os vigarizadores. Se o jogo de azar é comparavel a esses fenómenos sociais, encare-se de frente o problema, e o Estado determine se inclui ou não o crime entre as suas fontes de receita. E, conforme o determine, assim aceite ou não aceite. Estas considerações, porém, são de simples argumento: ninguem, que considere o jogo igual a um crime, pode pretender que ele se regulamente.

    *

    Passemos á hipótese oposta — a de que o jogo é um simples passatempo ou distracção. Nessa hipótese, pela qual o jogo é inofensivo, nada ha nele que regulamentar: ha simplesmente que tributar. Nenhum Estado regulamenta o «tennis» ou o «football»; quando muito, cobra uma percentagem sobre as entradas no campo, ou aluga o campo, se é seu.

    *

    Se, porém, o jogo é um vicio da natureza de uma excitação (se é que uma simples excitação é em si mesma vicio, e o não é apenas em seus excessos e desvios), então o problema é outro. É aqui que aparece, ou pode aparecer, o criterio de regulamentação.

    Partindo do principio (aliás discutivel) de que o Estado tem uma função moral positiva, e não simplesmente negativa, cumpre-lhe, nesta hipotese, regulamentar o jogo, isto é, restringir as condições do seu exercicio. Mas em que fundamentos deve assentar essa restrição?

    Se o jogo é (como é nesta hipótese) em si mesmo um mal, deve restringir-se o seu exercicio de modo que (1) se evite que os espíritos debeis caiam sob a sua influencia; (2) se evite que se multipliquem desmedidamente os lugares onde se jogue; e (3) se evite que seja a unica diversão possivel, para que qualquer criatura, que queira divertir-se, não seja como que obrigada a divertir-se dessa maneira.

    Dos espiritos debeis, uns — os jogadores insaciaveis — são, como os insaciaveis de outras especies, inatingiveis pela lei; o jogador-nato há-de jogar ainda que a lei estabeleça a pena de morte para quem jogue. Outros debeis — os que por sugestão se convertem em jogadores incorrigiveis — tambem não pode a lei resguardar, pois não ha sinal exterior, designavel, pelo qual, se possam conhecer. Só a uma espécie de debeis pode a lei dar protecção, porque ha uma maneira de conhecê-los: são os que são debeis por aquela imperfeita formação do espirito que resulta da sua pouca idade. A regulamentação do jogo deve, pois, proibi-lo aos menores.

    Para evitar a multiplicação desmedida de casas de jogo, ha só um processo — de considerar a industria do jogo como uma industria de luxo, e assim estabelecer um capital minimo elevado para as empresas que a pretendam exercer.

    Para o terceiro problema — evitar que o jogo seja o único divertimento acessivel — ha dois processos conjuntos a empregar — o obrigar as casas de jogo a terem outras diversões além do proprio jogo; e «o permitir o jogo só nos grandes centros, isto é, nas grandes cidades», ainda que, talvez, mas episodicamente, tambem se permitisse nas praias e estancias de aguas, que se tornam, em certo modo, «grandes centros» nos meses da sua frequência.

    Entendamo-nos bem: se a aldeia de Paio Pires (sem ofensa) não tiver animatografo, nem teatro, nem nenhum outro elemento de distracção, será um crime social instalar ali um casino de jogo, por isso que, constituindo esse casino o único foco de atracção, desde logo se tornará o jogo o unico divertimento, «o divertimento obrigatório», dessa aldeia. Numa cidade, porém, em que são varias as diversões, e a propria vida movimentada é, em certo modo, um entretenimento, não ha mal algum que se abram casinos sobre casinos, porque não constituem, nem podem constituir, focos «unicos» de atracção. Quero dizer, para o individuo capaz de raciocinar, este problema tem uma solução natural inteiramente ás avessas daquela que muitos lhe têm dado. Longe de se não dever jogar nas grandes cidades, «é precisamente só nas grandes cidades que se deve jogar».

    *

    São estes, clara e limpidamente deduzidos, os princípios em que deve assentar a regulamentação do jogo, caso se queira estabelecer esse regime. Todos os outros elementos, que se têm querido imiscuir na materia, são exteriores a ela, e, por o serem, absurdos e prejudiciais.

    FERNANDO PESSOA.

    Este artigo, assinado por Pessoa mas ignorado pela tradição editorial pessoana, foi recentemente recuperado, transcrito e comentado por Rui Sousa (Sousa 2020, pp. 427-505).
  • A REGULAMENTAÇÃO DO JOGO

    As verdadeiras bases do problema — Simplicidade da sua solução

    O problema geral do jogo de azar, e o problema particular da sua regulamentação, têm sido, sempre, postos erradamente ― o primeiro porque nunca se estudou, o segundo porque nunca se estudou o primeiro.

    Não é preciso, porém, ter um conceito assente e seguro do que é o jogo de azar, socialmente considerado, para se poder tratar do problema da sua regulamentação. Basta reparar que, sobre a natureza social do jogo, há três hipóteses possíveis, e que o princípio da regulamentação convém apenas a uma delas.

    Partamos, contudo, do princípio de que se quer regulamentar o jogo, e consideremos esse princípio em relação com as três hipóteses que se podem formular sobre a natureza social dele.

    Sobre o jogo, socialmente considerado, há três teorias possíveis. Ou é um vício da natureza de um crime, como o assassínio e o roubo; ou é um vício da simples natureza de uma excitação, como o álcool e o tabaco; ou não é um vício, mas um simples passatempo ou distração.

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    Se o jogo é um vício da natureza de um crime, deve ser severamente reprimido, nem se lhe deve aplicar legislação que não seja a penal. O não se poder abolir nada significa: também o assassínio e o roubo se não podem abolir. Mas, nesta hipótese, deve o Estado suprimir as lotarias e os sorteios de obrigações. Se o jogo de azar é, em si, um crime, não pode haver distinção entre as maneiras de o cometer, nem entre as aplicações do produto da comissão. A lei não distingue, no assassínio, entre o que é praticado com o barulho do tiro, e o que é realizado com o silêncio do veneno. E, onde há crime, o fim não justifica os meios, pelo menos perante a lei, isto é, perante o Estado. Se o que é feito em favor do Estado ou da caridade, por isso mesmo se justificasse, nada obstaria a que o Estado estabelecesse uma organização tributariamente patriótica de tráfico de brancas (ou de pretas), ou lançasse, em favor dos asilos e das casas de beneficência, um imposto de transações sobre os carteiristas e os vigarizadores. Se o jogo de azar é comparável a esses fenómenos sociais, encare-se de frente o problema, e o Estado determine se inclui ou não o crime entre as suas fontes de receita. E, conforme o determine, assim aceite ou não aceite. Estas considerações, porém, são de simples argumento: ninguém, que considere o jogo igual a um crime, pode pretender que ele se regulamente.

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    Passemos à hipótese oposta — a de que o jogo é um simples passatempo ou distração. Nessa hipótese, pela qual o jogo é inofensivo, nada há nele que regulamentar: há simplesmente que tributar. Nenhum Estado regulamenta o «tennis» ou o «football»; quando muito, cobra uma percentagem sobre as entradas no campo, ou aluga o campo, se é seu.

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    Se, porém, o jogo é um vício da natureza de uma excitação (se é que uma simples excitação é em si mesma vício, e o não é apenas em seus excessos e desvios), então o problema é outro. É aqui que aparece, ou pode aparecer, o critério de regulamentação.

    Partindo do princípio (aliás discutível) de que o Estado tem uma função moral positiva, e não simplesmente negativa, cumpre-lhe, nesta hipótese, regulamentar o jogo, isto é, restringir as condições do seu exercício. Mas em que fundamentos deve assentar essa restrição?

    Se o jogo é (como é nesta hipótese) em si mesmo um mal, deve restringir-se o seu exercício de modo que (1) se evite que os espíritos débeis caiam sob a sua influência; (2) se evite que se multipliquem desmedidamente os lugares onde se jogue; e (3) se evite que seja a única diversão possível, para que qualquer criatura, que queira divertir-se, não seja como que obrigada a divertir-se dessa maneira.

    Dos espíritos débeis, uns — os jogadores insaciáveis — são, como os insaciáveis de outras espécies, inatingíveis pela lei; o jogador-nato há de jogar ainda que a lei estabeleça a pena de morte para quem jogue. Outros débeis — os que por sugestão se convertem em jogadores incorrigíveis — também não pode a lei resguardar, pois não há sinal exterior, designável, pelo qual, se possam conhecer. Só a uma espécie de débeis pode a lei dar proteção, porque há uma maneira de conhecê-los: são os que são débeis por aquela imperfeita formação do espírito que resulta da sua pouca idade. A regulamentação do jogo deve, pois, proibi-lo aos menores.

    Para evitar a multiplicação desmedida de casas de jogo, há só um processo — de considerar a indústria do jogo como uma indústria de luxo, e assim estabelecer um capital mínimo elevado para as empresas que a pretendam exercer.

    Para o terceiro problema — evitar que o jogo seja o único divertimento acessível — há dois processos conjuntos a empregar — o obrigar as casas de jogo a terem outras diversões além do próprio jogo; e «o permitir o jogo só nos grandes centros, isto é, nas grandes cidades», ainda que, talvez, mas episodicamente, também se permitisse nas praias e estâncias de águas, que se tornam, em certo modo, «grandes centros» nos meses da sua frequência.

    Entendamo-nos bem: se a aldeia de Paio Pires (sem ofensa) não tiver animatógrafo, nem teatro, nem nenhum outro elemento de distração, será um crime social instalar ali um casino de jogo, por isso que, constituindo esse casino o único foco de atração, desde logo se tornará o jogo o único divertimento, «o divertimento obrigatório», dessa aldeia. Numa cidade, porém, em que são várias as diversões, e a própria vida movimentada é, em certo modo, um entretenimento, não há mal algum que se abram casinos sobre casinos, porque não constituem, nem podem constituir, focos «únicos» de atração. Quero dizer, para o indivíduo capaz de raciocinar, este problema tem uma solução natural inteiramente às avessas daquela que muitos lhe têm dado. Longe de se não dever jogar nas grandes cidades, «é precisamente só nas grandes cidades que se deve jogar».

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    São estes, clara e limpidamente deduzidos, os princípios em que deve assentar a regulamentação do jogo, caso se queira estabelecer esse regime. Todos os outros elementos, que se têm querido imiscuir na matéria, são exteriores a ela, e, por o serem, absurdos e prejudiciais.

    FERNANDO PESSOA.

    Este artigo, assinado por Pessoa mas ignorado pela tradição editorial pessoana, foi recentemente recuperado, transcrito e comentado por Rui Sousa (Sousa 2020, pp. 427-505).
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