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O Oitavo Poema de ʺO Guardador de Rebanhosʺ

Alberto Caeiro

Presença 30, janeiro — fevereiro de 1931, pp. 6-7.

  • [6]

    o oitavo poema de o guardador de rebanhos

    Num meio-dia de fim de primavera
    Tive um sonho como uma fotografia.
    Vi Jesus Cristo descer à terra.
    Veio pela encosta de um monte
    Tornado outra vez menino,
    A correr e a rolar-se pela erva
    E a arrancar flores para as deitar fora
    E a rir de modo a ouvir-se de longe.
    Tinha fugido do céu.
    Era nosso de mais para fingir
    De segunda pessoa da trindade.
    No céu era tudo falso, tudo em desacôrdo
    Com flores e árvores e pedras.
    No céu tinha que estar sempre sério
    E de vez em quando de se tornar outra vez homem
    E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
    Com uma coroa tôda à roda de espinhos
    E os pés espetados por um prego com cabeça,
    E até com um trapo à roda da cintura
    Como os pretos nas ilustrações.
    Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
    Como as outras crianças.
    O seu pai era duas pessoas —
    Um velho chamado José, que era carpinteiro,
    E que não era pai dêle;
    E o outro pai era uma pomba estúpida,
    A única pomba feia do mundo
    Porque não era do mundo nem era pomba.
    E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
    Não era mulher: era uma mala
    Em que êle tinha vindo do céu.
    E queriam que êle, que só nascera da mãe,
    E nunca tivera pai para amar com respeito,
    Prègasse a bondade e a justiça!
    Um dia que Deus estava a dormir
    E o Espírito-Santo andava a voar,
    Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
    Com o primeiro fêz que ninguém soubesse que êle tinha fugido.
    Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
    Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
    E deixou-o pregado na cruz que há no céu
    E serve de modêlo às outras.
    Depois fugiu para o sol
    E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
    Hoje vive na minha aldeia comigo.
    É uma criança bonita de riso e natural.
    Limpa o nariz ao braço direito,
    Chapinha nas pôças de água,
    Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
    Atira pedras aos burros,
    Rouba a fruta dos pomares
    E foge a chorar e a gritar dos cães.
    E, porque sabe que elas não gostam
    E que tôda a gente acha graça,
    Corre atrás das raparigas
    Que vão em ranchos pelas estradas
    Com as bilhas às cabeças
    E levanta-lhes as saias.
    A mim ensinou-me tudo.
    Ensinou-me a olhar para as coisas.
    Aponta-me tôdas as coisas que há nas flores.
    Mostra-me como as pedras são engraçadas
    Quando a gente as tem na mão
    E olha devagar para elas.
    Diz-me muito mal de Deus.
    Diz que êle é um velho estupido e doente,
    Sempre a escarrar no chao
    E a dizer indecências.
    A Virgem-Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
    E o Espírito-Santo coça-se com o bico
    E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
    Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
    Diz-me que Deus não percebe nada
    Das coisas que criou —
    «Se é que êle as criou, do que duvido» —.
    «Ele diz, por exemplo, que os sêres cantam a sua glória,
    Mas os sêres não cantam nada.
    Se cantassem seriam cantores.
    Os sêres existem e mais nada,
    E por isso se chamam sêres».
    E depois, cansado de dizer mal de Deus,
    O Menino Jesus adormece nos meus braços
    E eu levo-o ao cólo para casa.
    ................................
    Êle mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
    Êle é a Eterna Criança, o deus que faltava.
    Êle é o humano que é natural,
    [7] Êle é o divino que sorri e que brinca.
    E por isso é que eu sei com tôda a certeza
    Que êle é o Menino Jesus verdadeiro.
    E a criança tão humana que é divina
    É esta minha quotidiana vida de poeta,
    E é porque êle anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
    E que o meu mínimo olhar
    Me enche de sensação,
    E o mais pequeno som, seja do que fôr,
    Parece falar comigo.
    A Criança Nova que habita onde vivo
    Dá-me uma mão a mim
    E a outra a tudo que existe
    E assim vamos os três pelo caminho que houver,
    Saltando e cantando e rindo
    E gozando o nosso segrêdo comum
    Que é o de saber por tôda a parte
    Que não há mistério no mundo
    E que tudo vale a pena.
    A Criança Eterna acompanha-me sempre.
    A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
    O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
    São as cócegas que êle me faz, brincando, nas orelhas.
    Damo-nos tão bem um com o outro
    Na companhia de tudo
    Que nunca pensamos um no outro,
    Mas vivemos juntos e dois
    Com um acôrdo íntimo
    Como a mão direita e a esquerda.
    Ao noitecer brincamos as cinco pedrinhas
    No degrau da porta de casa,
    Graves como convém a um deus e a um poeta,
    E como se cada pedra
    Fôsse todo um universo
    E fôsse por isso um grande perigo para ela
    Deixá-la cair no chão.
    Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
    E êle sorri, porque tudo é incrivel.
    Ri dos reis e dos que não são reis,
    E tem pena de ouvir falar das guerras,
    E dos comércios, e dos navios
    Que ficam fumo no ar dos altos mares.
    Porque êle sabe que tudo isso falta àquela verdade
    Que uma flor tem ao florescer
    E que anda com a luz do sol
    A variar os montes e os vales
    E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
    Depois êle adormece e eu deito-o.
    Levo-o ao colo para dentro de casa
    E deito-o, despindo-o lentamente
    E como seguindo um ritual muito limpo
    E todo materno até êle estar nu.
    Êle dorme dentro da minha alma
    E às vezes acorda de noite
    E brinca com os meus sonhos.
    Vira uns de pernas para o ar,
    Põe uns em cima dos outros
    E bate as palmas sòzinho
    Sorrindo para o meu sono.
    ................................
    Quando eu morrer, filhinho,
    Seja eu a criança, o mais pequeno.
    Pega-me tu ao colo
    E leva-me para dentro da tua casa.
    Despe o meu ser cansado e humano
    E deita-me na tua cama.
    E conta-me histórias, caso eu acorde,
    Para eu tornar a adormecer.
    E dá-me sonhos teus para eu brincar
    Até que nasça qualquer dia
    Que tu sabes qual é.
    ................................
    Esta é a história do meu Menino Jesus.
    Porque razão que se perceba
    Nao há de ser ela mais verdadeira
    Que tudo quanto os filósofos pensam
    E tudo quanto as religiões ensinam?

    ALBERTO CAEIRO

  • [6]

    o oitavo poema de o guardador de rebanhos

    Num meio-dia de fim de primavera
    Tive um sonho como uma fotografia.
    Vi Jesus Cristo descer à terra.
    Veio pela encosta de um monte
    Tornado outra vez menino,
    A correr e a rolar-se pela erva
    E a arrancar flores para as deitar fora
    E a rir de modo a ouvir-se de longe.
    Tinha fugido do céu.
    Era nosso de mais para fingir
    De segunda pessoa da trindade.
    No céu era tudo falso, tudo em desacordo
    Com flores e árvores e pedras.
    No céu tinha que estar sempre sério
    E de vez em quando de se tornar outra vez homem
    E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
    Com uma coroa toda à roda de espinhos
    E os pés espetados por um prego com cabeça,
    E até com um trapo à roda da cintura
    Como os pretos nas ilustrações.
    Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
    Como as outras crianças.
    O seu pai era duas pessoas —
    Um velho chamado José, que era carpinteiro,
    E que não era pai dele;
    E o outro pai era uma pomba estúpida,
    A única pomba feia do mundo
    Porque não era do mundo nem era pomba.
    E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
    Não era mulher: era uma mala
    Em que ele tinha vindo do céu.
    E queriam que ele, que só nascera da mãe,
    E nunca tivera pai para amar com respeito,
    Pregasse a bondade e a justiça!
    Um dia que Deus estava a dormir
    E o Espírito-Santo andava a voar,
    Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
    Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
    Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
    Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
    E deixou-o pregado na cruz que há no céu
    E serve de modelo às outras.
    Depois fugiu para o sol
    E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
    Hoje vive na minha aldeia comigo.
    É uma criança bonita de riso e natural.
    Limpa o nariz ao braço direito,
    Chapinha nas poças de água,
    Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
    Atira pedras aos burros,
    Rouba a fruta dos pomares
    E foge a chorar e a gritar dos cães.
    E, porque sabe que elas não gostam
    E que toda a gente acha graça,
    Corre atrás das raparigas
    Que vão em ranchos pelas estradas
    Com as bilhas às cabeças
    E levanta-lhes as saias.
    A mim ensinou-me tudo.
    Ensinou-me a olhar para as coisas.
    Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
    Mostra-me como as pedras são engraçadas
    Quando a gente as tem na mão
    E olha devagar para elas.
    Diz-me muito mal de Deus.
    Diz que ele é um velho estúpido e doente,
    Sempre a escarrar no chão
    E a dizer indecências.
    A Virgem-Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
    E o Espírito-Santo coça-se com o bico
    E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
    Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
    Diz-me que Deus não percebe nada
    Das coisas que criou —
    «Se é que ele as criou, do que duvido» —.
    «Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
    Mas os seres não cantam nada.
    Se cantassem seriam cantores.
    Os seres existem e mais nada,
    E por isso se chamam seres».
    E depois, cansado de dizer mal de Deus,
    O Menino Jesus adormece nos meus braços
    E eu levo-o ao colo para casa.
    ................................
    Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
    Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
    Ele é o humano que é natural,
    [7] Ele é o divino que sorri e que brinca.
    E por isso é que eu sei com toda a certeza
    Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
    E a criança tão humana que é divina
    É esta minha quotidiana vida de poeta,
    E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
    E que o meu mínimo olhar
    Me enche de sensação,
    E o mais pequeno som, seja do que for,
    Parece falar comigo.
    A Criança Nova que habita onde vivo
    Dá-me uma mão a mim
    E a outra a tudo que existe
    E assim vamos os três pelo caminho que houver,
    Saltando e cantando e rindo
    E gozando o nosso segredo comum
    Que é o de saber por toda a parte
    Que não há mistério no mundo
    E que tudo vale a pena.
    A Criança Eterna acompanha-me sempre.
    A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
    O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
    São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
    Damo-nos tão bem um com o outro
    Na companhia de tudo
    Que nunca pensamos um no outro,
    Mas vivemos juntos e dois
    Com um acordo íntimo
    Como a mão direita e a esquerda.
    Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
    No degrau da porta de casa,
    Graves como convém a um deus e a um poeta,
    E como se cada pedra
    Fosse todo um universo
    E fosse por isso um grande perigo para ela
    Deixá-la cair no chão.
    Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
    E ele sorri, porque tudo é incrível.
    Ri dos reis e dos que não são reis,
    E tem pena de ouvir falar das guerras,
    E dos comércios, e dos navios
    Que ficam fumo no ar dos altos mares.
    Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
    Que uma flor tem ao florescer
    E que anda com a luz do sol
    A variar os montes e os vales
    E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
    Depois ele adormece e eu deito-o.
    Levo-o ao colo para dentro de casa
    E deito-o, despindo-o lentamente
    E como seguindo um ritual muito limpo
    E todo materno até ele estar nu.
    Ele dorme dentro da minha alma
    E às vezes acorda de noite
    E brinca com os meus sonhos.
    Vira uns de pernas para o ar,
    Põe uns em cima dos outros
    E bate as palmas sozinho
    Sorrindo para o meu sono.
    ................................
    Quando eu morrer, filhinho,
    Seja eu a criança, o mais pequeno.
    Pega-me tu ao colo
    E leva-me para dentro da tua casa.
    Despe o meu ser cansado e humano
    E deita-me na tua cama.
    E conta-me histórias, caso eu acorde,
    Para eu tornar a adormecer.
    E dá-me sonhos teus para eu brincar
    Até que nasça qualquer dia
    Que tu sabes qual é.
    ................................
    Esta é a história do meu Menino Jesus.
    Porque razão que se perceba
    Nao há de ser ela mais verdadeira
    Que tudo quanto os filósofos pensam
    E tudo quanto as religiões ensinam?

    ALBERTO CAEIRO