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Alguns Poemas (Sacadura Cabral, Gládio, De um Cancioneiro)

Fernando Pessoa

Athena 3, dezembro de 1924, pp. 81-88.

  • [81]

    ALGUNS POEMAS

    SACADURA CABRAL

    No frio mar do alheio Norte,

    Morto, quedou,


    Servo da Sorte infiel que a sorte

    Deu e tirou.


    Brilha alto a chamma que se apaga.

    A noite o encheu.


    De extranho mar que extranha plaga,

    Nosso, o acolheu?


    Floriu, murchou na extrema haste;

    Joia do ousar,


    Que teve por eterno engaste

    O céu e o mar.


    GLADIO

    Ao Alberto Da Cunha Dias.
    Deu-me Deus o Seu gladio, porque eu faça

    A sua sancta guerra.


    Sagrou-me Seu em genio e em desgraça
    Ás horas em que um frio vento passa

    Por sobre a fria terra.


    Poz-me as mãos sobre os hombros, e dourou-me

    A fronte com o olhar;


    E esta febre de Além, que me consome,
    E este querer-justiça são Seu nome

    Dentro em mim a vibrar.


    E eu vou, e a luz do gladio erguido dá

    Em minha face calma.


    Cheio de Deus, não temo o que virá,
    Pois, venha o que vier, nunca será

    Maior do que a minha alma!


    [82]

    DE UM CANCIONEIRO

    No entardecer da terra
    O sopro do longo outomno
    Amarelleceu o chão.
    Um vago vento erra,
    Como um sonho mau num somno,
    Na livida solidão.
    Soergue as folhas, e pousa
    As folhas, e volve, e revolve,
    E esvahe-se inda outra vez.
    Mas a folha não repousa,
    E o vento livido volve
    E expira na lividez.
    Eu já não sou quem era;
    O que eu sonhei, morri-o;
    E até do que hoje sou
    Amanhã direi, Quem dera
    Volver a sel-o!… Mais frio
    O vento vago voltou.
    *
    Ó sino da minha aldeia,
    Dolente na tarde calma,
    Cada tua badalada
    Soa dentro da minha alma.
    E é tam lento o teu soar,
    Tam como triste da vida,
    Que já a primeira pancada
    Tem o som de repetida.
    Por mais que tanjas perto,
    Quando passo, sempre errante,
    És para mim como um sonho,
    Soas-me na alma distante.
    [83]
    A cada pancada tua,
    Vibrante no céu aberto,
    Sinto mais longe o passado,
    Sinto a saudade mais perto.
    *
    Leve, breve, suave,
    Um canto de ave
    Sobe no ar com que principia
    O dia.
    Escuto, e passou...
    Parece que foi só porque escutei
    Que parou.
    Nunca, nunca, em nada,
    Raie a madrugada,
    Ou splenda o dia, ou doire no declive,
    Tive
    Prazer a durar
    Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
    Gosar.
    *
    Pobre velha música!
    Não sei porque agrado,
    Enche-se de lagrimas
    Meu olhar parado.
    Recordo outro ouvir-te.
    Não sei se te ouvi
    Nessa minha infancia
    Que me lembra em ti.
    Com que ancia tam raiva
    Quero aquelle outrora!
    E eu era feliz? Não sei:
    Fui-o outrora agora.
    *
    [84]
    Dorme enquanto eu vello...
    Deixa-me sonhar...
    Nada em mim é risonho.
    Quero-te para sonho,
    Não para te amar.
    A tua carne calma
    É fria em meu querer.
    Os meus desejos são cansaços.
    Nem quero ter nos braços
    Meu sonho do teu ser.
    Dorme, dorme, dorme,
    Vaga em teu sorrir...
    Sonho-te tam attento
    Que o sonho é encantamento
    E eu sonho sem sentir.
    *
    Sol nullo dos dias vãos,
    Cheios de lida e de calma,
    Aquece ao menos as mãos
    A quem não entras na alma!
    Que ao menos a mão, roçando
    A mão que por ella passe,
    Com externo calor brando
    O frio da alma disfarce!
    Senhor, já que a dor é nossa
    E a fraqueza que ella tem,
    Dá-nos ao menos a força
    De a não mostrar a ninguem!
    *
    Trila na noite uma flauta. É de algum
    Pastor? Que importa? Perdida
    [85] Série de notas vaga e sem sentido nenhum,
    Como a vida.
    Sem nexo ou principio ou fim ondeia
    A aria alada.
    Pobre aria fóra de musica e de voz, tam cheia
    De não ser nada!
    Não ha nexo ou fio por que se lembre aquella
    Aria, ao parar;
    E já ao ouvil-a soffro a saudade d’ella
    E o quando cessar.
    *
    Põe-me as mãos nos hombros…
    Beija-me na fronte…
    Minha vida é escombros,
    A minha alma insonte.
    Eu não sei por quê,
    Meu dêsde onde venho,
    Sou o ser que vê,
    E vê tudo extranho.
    Põe a tua mão
    Sobre o meu cabello…
    Tudo é illusão.
    Sonhar é sabel-o.
    *
    Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança

    Só a quem já confia!


    É só á dormente, e não á morta, sperança

    Que accorda o teu dia.


    A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo

    Todo sonho vão,


    Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo

    E a ter coração,


    [86] A esses raias sem o dia que trazes, ou sòmente

    Como alguem que vem


    Pela rua, invisivel ao nosso olhar consciente,

    Por não ser-nos ninguem.


    *
    Treme em luz a agua.
    Mal vejo. Parece
    Que uma alheia magua
    Na minha alma desce —
    Magua erma de alguem
    De algum outro mundo
    Onde a dor é um bem
    E o amor é profundo,
    E só punge ver,
    Ao longe, illudida,
    A vida a morrer
    O sonho da vida.
    *
    Dorme sobre o meu seio,
    Sonhando de sonhar...
    No teu olhar eu leio
    Um lubrico vagar.
    Dorme no sonho de existir
    E na illusão de amar.
    Tudo é nada, e tudo
    Um sonho finge ser.
    O spaço negro é mudo.
    Dorme, e, ao adormecer,
    Saibas do coração sorrir
    Sorrisos de esquecer.
    Dorme sobre o meu seio,
    Sem magua nem amor…
    [87] No teu olhar eu leio
    O intimo torpor
    De quem conhece o nada-ser
    De vida e goso e dor.
    *
    Ao longe, ao luar,
    No rio uma vela,
    Serena a passar,
    Que é que me revela?
    Não sei, mas meu ser
    Tornou-se-me extranho,
    E eu sonho sem ver
    Os sonhos que tenho.
    Que angustia me enlaça?
    Que amor não se explica?
    É a vela que passa
    Na noite que fica.
    *
    Em toda a noite o somno não veio. Agora

    Raia do fundo


    Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.

    Que faço eu no mundo?


    Nada que a noite acalme ou levante a aurora,

    Coisa seria ou vã.


    Com olhos tontos da febre vã da vigilia

    Vejo com horror


    O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim

    Do mundo e da dor —


    Um dia egual aos outros, da eterna familia

    De serem assim.


    Nem o symbolo ao menos val, a significação

    Da manhã que vem


    [88] Sahindo lenta da propria essencia da noite que era,

    Para quem,


    Por tantas vezes ter sempre sperado em vão,

    Já nada spera.


    *
    Ella canta, pobre ceifeira,
    Julgando se feliz talvez;
    Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
    De alegre e anonyma viuvez,
    Ondula como um canto de ave
    No ar limpo como um limiar,
    E ha curvas no enredo suave
    Do som que ella tem a cantar.
    Ouvil-a alegra e entristece,
    Na sua voz ha o campo e a lida,
    E canta como se tivesse
    Mais razões p’ra cantar que a vida.
    Ah, canta, canta sem razão!
    O que em mim sente stá pensando.
    Derrama no meu coração
    A tua incerta voz ondeando!
    Ah, poder ser tu, sendo eu!
    Ter a tua alegre inconsciencia,
    E a consciencia d’isso! Ó céu!
    Ó campo! ó canção! A sciencia
    Pesa tanto e a vida é tam breve!
    Entrae por mim dentro! Tornae
    Minha alma a vossa sombra leve!
    Depois, levando-me, passae!

    FERNANDO PESSOA

    O poema ʺGladioʺ foi republicado em Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, 1930, pp. 21-22. Para além de diferenças ortográficas, a segunda publicação apresenta a correção de uma gralha da primeira, lendo-se no início do terceiro verso da segunda estrofe ʺE esta febre de alémʺ. A transcrição aqui apresentada segue esta correção.

    Em ʺAlguns Poemas / De um Cancioneiroʺ Pessoa republica quatro poemas, anteriormente publicados sob os títulos “Impressões do Crepusculo” (A Renascença, fevereiro de 1914), ʺA Ceifeiraʺ (Terra Nossa, setembro de 1916, p. 46), ʺCanção de Outomnoʺ (Ilustração Portuguesa, 28 de janeiro de 1922, p. 86) e ʺCançãoʺ (Ilustração Portuguesa, 11 de fevereiro de 1922, p. 129), apresentando as diferentes versões destes poemas diferenças significativas.

  • [81]

    ALGUNS POEMAS

    SACADURA CABRAL

    No frio mar do alheio Norte,

    Morto, quedou,


    Servo da Sorte infiel que a sorte

    Deu e tirou.


    Brilha alto a chama que se apaga.

    A noite o encheu.


    De estranho mar que estranha plaga,

    Nosso, o acolheu?


    Floriu, murchou na estrema haste;

    Joia do ousar,


    Que teve por eterno engaste

    O céu e o mar.


    GLÁDIO

    Ao Alberto Da Cunha Dias.
    Deu-me Deus o Seu gládio, porque eu faça

    A sua santa guerra.


    Sagrou-me Seu em génio e em desgraça
    Às horas em que um frio vento passa

    Por sobre a fria terra.


    Pôs-me as mãos sobre os ombros, e dourou-me

    A fronte com o olhar;


    E esta febre de Além, que me consome,
    E este querer-justiça são Seu nome

    Dentro em mim a vibrar.


    E eu vou, e a luz do gládio erguido dá

    Em minha face calma.


    Cheio de Deus, não temo o que virá,
    Pois, venha o que vier, nunca será

    Maior do que a minha alma!


    [82]

    DE UM CANCIONEIRO

    No entardecer da terra
    O sopro do longo outono
    Amareleceu o chão.
    Um vago vento erra,
    Como um sonho mau num sono,
    Na lívida solidão.
    Soergue as folhas, e pousa
    As folhas, e volve, e revolve,
    E esvai-se ainda outra vez.
    Mas a folha não repousa,
    E o vento lívido volve
    E expira na lividez.
    Eu já não sou quem era;
    O que eu sonhei, morri-o;
    E até do que hoje sou
    Amanhã direi, Quem dera
    Volver a sê-lo!… Mais frio
    O vento vago voltou.
    *
    Ó sino da minha aldeia,
    Dolente na tarde calma,
    Cada tua badalada
    Soa dentro da minha alma.
    E é tão lento o teu soar,
    Tão como triste da vida,
    Que já a primeira pancada
    Tem o som de repetida.
    Por mais que tanjas perto,
    Quando passo, sempre errante,
    És para mim como um sonho,
    Soas-me na alma distante.
    [83]
    A cada pancada tua,
    Vibrante no céu aberto,
    Sinto mais longe o passado,
    Sinto a saudade mais perto.
    *
    Leve, breve, suave,
    Um canto de ave
    Sobe no ar com que principia
    O dia.
    Escuto, e passou...
    Parece que foi só porque escutei
    Que parou.
    Nunca, nunca, em nada,
    Raie a madrugada,
    Ou esplenda o dia, ou doire no declive,
    Tive
    Prazer a durar
    Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
    Gozar.
    *
    Pobre velha música!
    Não sei porque agrado,
    Enche-se de lágrimas
    Meu olhar parado.
    Recordo outro ouvir-te.
    Não sei se te ouvi
    Nessa minha infância
    Que me lembra em ti.
    Com que ânsia tam raiva
    Quero aquele outrora!
    E eu era feliz? Não sei:
    Fui-o outrora agora.
    *
    [84]
    Dorme enquanto eu velo...
    Deixa-me sonhar...
    Nada em mim é risonho.
    Quero-te para sonho,
    Não para te amar.
    A tua carne calma
    É fria em meu querer.
    Os meus desejos são cansaços.
    Nem quero ter nos braços
    Meu sonho do teu ser.
    Dorme, dorme, dorme,
    Vaga em teu sorrir...
    Sonho-te tão atento
    Que o sonho é encantamento
    E eu sonho sem sentir.
    *
    Sol nulo dos dias vãos,
    Cheios de lida e de calma,
    Aquece ao menos as mãos
    A quem não entras na alma!
    Que ao menos a mão, roçando
    A mão que por ela passe,
    Com externo calor brando
    O frio da alma disfarce!
    Senhor, já que a dor é nossa
    E a fraqueza que ela tem,
    Dá-nos ao menos a força
    De a não mostrar a ninguém!
    *
    Trila na noite uma flauta. É de algum
    Pastor? Que importa? Perdida
    [85] Série de notas vaga e sem sentido nenhum,
    Como a vida.
    Sem nexo ou princípio ou fim ondeia
    A ária alada.
    Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia
    De não ser nada!
    Não há nexo ou fio por que se lembre aquela
    Ária, ao parar;
    E já ao ouvi-la sofro a saudade dela
    E o quando cessar.
    *
    Põe-me as mãos nos ombros…
    Beija-me na fronte…
    Minha vida é escombros,
    A minha alma insonte.
    Eu não sei porquê,
    Meu desde onde venho,
    Sou o ser que vê,
    E vê tudo estranho.
    Põe a tua mão
    Sobre o meu cabelo…
    Tudo é ilusão.
    Sonhar é sabê-lo.
    *
    Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança

    Só a quem já confia!


    É só à dormente, e não à morta, esperança

    Que acorda o teu dia.


    A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo

    Todo sonho vão,


    Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo

    E a ter coração,


    [86] A esses raias sem o dia que trazes, ou somente

    Como alguém que vem


    Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente,

    Por não ser-nos ninguém.


    *
    Treme em luz a água.
    Mal vejo. Parece
    Que uma alheia mágoa
    Na minha alma desce —
    Mágoa erma de alguém
    De algum outro mundo
    Onde a dor é um bem
    E o amor é profundo,
    E só punge ver,
    Ao longe, iludida,
    A vida a morrer
    O sonho da vida.
    *
    Dorme sobre o meu seio,
    Sonhando de sonhar...
    No teu olhar eu leio
    Um lúbrico vagar.
    Dorme no sonho de existir
    E na ilusão de amar.
    Tudo é nada, e tudo
    Um sonho finge ser.
    O espaço negro é mudo.
    Dorme, e, ao adormecer,
    Saibas do coração sorrir
    Sorrisos de esquecer.
    Dorme sobre o meu seio,
    Sem mágoa nem amor…
    [87] No teu olhar eu leio
    O íntimo torpor
    De quem conhece o nada-ser
    De vida e gozo e dor.
    *
    Ao longe, ao luar,
    No rio uma vela,
    Serena a passar,
    Que é que me revela?
    Não sei, mas meu ser
    Tornou-se-me estranho,
    E eu sonho sem ver
    Os sonhos que tenho.
    Que angústia me enlaça?
    Que amor não se explica?
    É a vela que passa
    Na noite que fica.
    *
    Em toda a noite o sono não veio. Agora

    Raia do fundo


    Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.

    Que faço eu no mundo?


    Nada que a noite acalme ou levante a aurora,

    Coisa séria ou vã.


    Com olhos tontos da febre vã da vigília

    Vejo com horror


    O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim

    Do mundo e da dor —


    Um dia igual aos outros, da eterna família

    De serem assim.


    Nem o símbolo ao menos vale, a significação

    Da manhã que vem


    [88] Saindo lenta da própria essência da noite que era,

    Para quem,


    Por tantas vezes ter sempre esperado em vão,

    Já nada espera.


    *
    Ela canta, pobre ceifeira,
    Julgando-se feliz talvez;
    Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
    De alegre e anónima viuvez,
    Ondula como um canto de ave
    No ar limpo como um limiar,
    E há curvas no enredo suave
    Do som que ela tem a cantar.
    Ouvi-la alegra e entristece,
    Na sua voz há o campo e a lida,
    E canta como se tivesse
    Mais razões p’ra cantar que a vida.
    Ah, canta, canta sem razão!
    O que em mim sente está pensando.
    Derrama no meu coração
    A tua incerta voz ondeando!
    Ah, poder ser tu, sendo eu!
    Ter a tua alegre inconsciência,
    E a consciência disso! Ó céu!
    Ó campo! ó canção! A ciência
    Pesa tanto e a vida é tão breve!
    Entrai por mim dentro! Tornai
    Minha alma a vossa sombra leve!
    Depois, levando-me, passai!

    FERNANDO PESSOA

    O poema ʺGladioʺ foi republicado em Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, 1930, pp. 21-22. Para além de diferenças ortográficas, a segunda publicação apresenta a correção de uma gralha da primeira, lendo-se no início do terceiro verso da segunda estrofe ʺE esta febre de alémʺ. A transcrição aqui apresentada segue esta correção.

    Em ʺAlguns Poemas / De um Cancioneiroʺ Pessoa republica quatro poemas, anteriormente publicados sob os títulos “Impressões do Crepusculo” (A Renascença, fevereiro de 1914), ʺA Ceifeiraʺ (Terra Nossa, setembro de 1916, p. 46), ʺCanção de Outomnoʺ (Ilustração Portuguesa, 28 de janeiro de 1922, p. 86) e ʺCançãoʺ (Ilustração Portuguesa, 11 de fevereiro de 1922, p. 129), apresentando as diferentes versões destes poemas diferenças significativas.