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[19]
ODES
LIVRO PRIMEIRO
I
Seguro assento na columna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo innumero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
D’elles se plasma torna, e á arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nella.
II
As rosas amo dos jardins de Adonis,
Essas volucres amo, Lydia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para ellas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apollo deixe
O seu curso visivel.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lydia, voluntariamente
Que ha noite antes e após
O pouco que durâmos.
III
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Eolo captivos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Aguas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Si aqui de um manso mar meu fundo indicio
Trez ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Echoa de Saturno?
[20]IV
Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiraveis pincaros,
Perennes sem ter flores.
Só de acceitar tenhamos a sciencia,
E, emquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha comnosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, ás luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E reflectindo um pouco.
V
Como si cada beijo
Fôra de despedida,
Minha Chloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No hombro a mão, que chama
Á barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mutuos fomos
E a alheia somma universal da vida.
VI
O rythmo antigo que ha em pés descalços,
Esse rythmo das nymphas repetido,
Quando sob o arvoredo
Batem o som da dança,
Vós na alva praia relembrae, fazendo,
Que scura a spuma deixa; vós, infantes,
Que inda não tendes cura
De ter cura, reponde
Ruidosa a roda, emquanto arqueia Apollo,
Como um ramo alto, a curva azul que doura,
E a perenne maré
Flue, enchente ou vasante.
VII
Ponho na altiva mente o fixo exforço
Da altura, e á sorte deixo,
E a suas leis, o verso;
Que, quando é alto e regio o pensamento,
Subdita a phrase o busca
E o scravo rythmo o serve.
[21]VIII
Quam breve tempo é a mais longa vida
E a juventude nella! Ah Chloe, Chloe,
Si não amo, nem bebo,
Nem sem querer não penso,
Pesa-me a lei inimploravel, doe-me
A hora invita, o tempo que não cessa,
E aos ouvidos me sobe
Dos juncos o ruido
Na occulta margem onde os lirios frios
Da infera leiva crescem, e a corrente
Não sabe onde é o dia,
Sussurro gemebundo.
IX
Coroae-me de rosas,
Coroae-me em verdade
De rosas —
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tam cedo!
Coroae-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
X
Melhor destino que o de conhecer-se
Não frue quem mente frue. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
Si não houver em mim poder que vença
As parcas trez e as moles do futuro,
Já me dêem os deuses
O poder de sabe-lo;
E a belleza, increavel por meu sestro,
Eu gose externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte sécca.
XI
Temo, Lydia, o destino. Nada é certo.
Em qualquer hora pode succeder-nos
O que nos tudo mude.
Fora do conhecido é extranho o passo
Que proprio damos. Graves numes guardam
As lindas do que é uso.
Não somos deuses: cegos, receemos,
E a parca dada vida anteponhamos
Á novidade, abysmo.
[22]XII
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo ha para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Si te colher avaro
A mão da infausta sphynge, tu perenne
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não déste.
XIII
Ólho os campos, Neera,
Campos, campos, e soffro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira antesinto
Que serei não sentindo,
Ou só quanto o que ignoro
Me incognito ministre.
E menos ao instante
Chóro, que a mim futuro,
Subdito ausente e nullo
Do universal destíno.
XIV
De novo traz as apparentes novas
Flores o verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais d’elle o infecundo abysmo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
Á clara luz superna
A presença vivída.
Não mais; e a prole a que, pensando, dera
A vida da razão, em vão o chama,
Que as nove chaves fecham
Da Styge irreversivel.
O que foi como um deus entre os que cantam,
O que do Olympo as vozes, que chamavam,
Scutando ouviu, e, ouvindo,
Entendeu, hoje é nada.
Tecei embora as, que teceis, grinaldas.
Quem coroaes, não coroando a elle?
Votivas as deponde,
Funebres sem ter culto.
Fique, porém, livre da leiva e do Orco,
A fama; e tu, que Ulysses erigira,
Tu, em teus septe montes,
Orgulha-te materna,
Egual, desde elle, ás septe que contendem
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
Ou heptapyla Thebas,
Ogygia mãe de Pindaro.
[23]XV
Este, seu scasso campo ora lavrando,
Ora, solemne, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, gosa incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Per que consilios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as hervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica,
Filhos, diversa e sua.
XVI
Tuas, não minhas, teço estas grinaldas,
Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu não vejo.
Se não pesar na vida melhor goso
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos unisonos á sorte
Que houver, até que chegue
A hora do barqueiro.
XVII
Não queiras, Lydia, edificar no spaço
Que figuras futuro, ou prometter-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não sperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ella de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abysmo?
XVIII
Saudoso já d’este verão que vejo,
Lagrimas para as flores d’elle emprego
Na lembrança invertida
De quando hei de perdel-as.
Transpostos os portaes irreparaveis
De cada anno, me anticipo a sombra
Em que hei de errar, sem flores,
No abysmo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se commigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra.
[24]XIX
Prazer, mas devagar,
Lydia, que a sorte áquelles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não dispertemos, onde dorme, a erynnis
Que cada goso trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gosemos escondidos.
A sorte inveja, Lydia. Emmudeçamos.
XX
Cuidas, invio, que cumpres, apertando
Teus infecundos, trabalhosos dias
Em feixes de hirta lenha,
Sem illusão a vida.
A tua lenha é só peso que levas
Para onde não tens fogo que te aqueça.
Nem soffrem peso aos hombros
As sombras que seremos.
Para folgar não folgas; e, se legas,
Antes legues o exemplo, que riquezas,
De como a vida basta
Curta, nem tambem dura.
Pouco usamos do pouco que mal temos.
A obra cança, o ouro não é nosso.
De nós a mesma fama
Ri-se, que a não veremos
Quando, acabados pelas parcas, formos,
Vultos solemnes, de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal —
O barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços da frieza stygia
E o regaço insaciavel
Da patria de Plutão.
RICARDO REIS
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[19]
ODES
LIVRO PRIMEIRO
I
Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido;
Que a mente, quando, fixa, em si contempla
Os reflexos do mundo,
Deles se plasma torna, e à arte o mundo
Cria, que não a mente.
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.
II
As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
III
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?
[20]IV
Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência,
E, enquanto bate o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha connosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, às luzes transparentes
E deixando escorrer a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco.
V
Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Chloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos
E a alheia soma universal da vida.
VI
O ritmo antigo que há em pés descalços,
Esse ritmo das ninfas repetido,
Quando sob o arvoredo
Batem o som da dança,
Vós na alva praia relembrai, fazendo,
Que escura a espuma deixa; vós, infantes,
Que ainda não tendes cura
De ter cura, reponde
Ruidosa a roda, enquanto arqueia Apolo,
Como um ramo alto, a curva azul que doura,
E a perene maré
Flui, enchente ou vazante.
VII
Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E a suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbdita a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.
[21]VIII
Quão breve tempo é a mais longa vida
E a juventude nela! Ah Chloe, Chloe,
Se não amo, nem bebo,
Nem sem querer não penso,
Pesa-me a lei inimplorável, dói-me
A hora invita, o tempo que não cessa,
E aos ouvidos me sobe
Dos juncos o ruído
Na oculta margem onde os lírios frios
Da infera leiva crescem, e a corrente
Não sabe onde é o dia,
Sussurro gemebundo.
IX
Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas —
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.
X
Melhor destino que o de conhecer-se
Não frui quem mente frui. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
Se não houver em mim poder que vença
As parcas três e as moles do futuro,
Já me deem os deuses
O poder de sabê-lo;
E a beleza, incriável por meu sestro,
Eu goze externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte seca.
XI
Temo, Lídia, o destino. Nada é certo.
Em qualquer hora pode suceder-nos
O que nos tudo mude.
Fora do conhecido é estranho o passo
Que próprio damos. Graves numes guardam
As lindas do que é uso.
Não somos deuses: cegos, receemos,
E a parca dada vida anteponhamos
À novidade, abismo.
[22]XII
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
XIII
Olho os campos, Neera,
Campos, campos, e sofro
Já o frio da sombra
Em que não terei olhos.
A caveira antessinto
Que serei não sentindo,
Ou só quanto o que ignoro
Me incógnito ministre.
E menos ao instante
Choro, que a mim futuro,
Súbdito ausente e nulo
Do universal destino.
XIV
De novo traz as aparentes novas
Flores o verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais dele o infecundo abismo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
À clara luz superna
A presença vivida.
Não mais; e a prole a que, pensando, dera
A vida da razão, em vão o chama,
Que as nove chaves fecham
Da Estige irreversível.
O que foi como um deus entre os que cantam,
O que do Olimpo as vozes, que chamavam,
Escutando ouviu, e, ouvindo,
Entendeu, hoje é nada.
Tecei embora as, que teceis, grinaldas.
Quem coroais, não coroando a ele?
Votivas as deponde,
Fúnebres sem ter culto.
Fique, porém, livre da leiva e do Orco,
A fama; e tu, que Ulisses erigira,
Tu, em teus sete montes,
Orgulha-te materna,
Igual, desde ele, às sete que contendem
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
Ou heptápila Tebas,
Ogígia mãe de Píndaro.
[23]XV
Este, seu escasso campo ora lavrando,
Ora, solene, olhando-o com a vista
De quem a um filho olha, goza incerto
A não-pensada vida.
Das fingidas fronteiras a mudança
O arado lhe não tolhe, nem o empece
Por que consílios se o destino rege
Dos povos pacientes.
Pouco mais no presente do futuro
Que as ervas que arrancou, seguro vive
A antiga vida que não torna, e fica,
Filhos, diversa e sua.
XVI
Tuas, não minhas, teço estas grinaldas,
Que em minha fronte renovadas ponho.
Para mim tece as tuas,
Que as minhas eu não vejo.
Se não pesar na vida melhor gozo
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo,
Surdos conciliemos
O insubsistente surdo.
Coroemo-nos pois uns para os outros,
E brindemos uníssonos à sorte
Que houver, até que chegue
A hora do barqueiro.
XVII
Não queiras, Lídia, edificar no espaço
Que figuras futuro, ou prometer-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não esperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ela de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?
XVIII
Saudoso já deste verão que vejo,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei de errar, sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra.
[24]XIX
Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a erínis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.
XX
Cuidas, ínvio, que cumpres, apertando
Teus infecundos, trabalhosos dias
Em feixes de hirta lenha,
Sem ilusão a vida.
A tua lenha é só peso que levas
Para onde não tens fogo que te aqueça.
Nem sofrem peso aos ombros
As sombras que seremos.
Para folgar não folgas; e, se legas,
Antes legues o exemplo, que riquezas,
De como a vida basta
Curta, nem também dura.
Pouco usamos do pouco que mal temos.
A obra cansa, o ouro não é nosso.
De nós a mesma fama
Ri-se, que a não veremos
Quando, acabados pelas parcas, formos,
Vultos solenes, de repente antigos,
E cada vez mais sombras,
Ao encontro fatal —
O barco escuro no soturno rio,
E os nove abraços da frieza estígia
E o regaço insaciável
Da pátria de Plutão.
RICARDO REIS
Odes, Livro Primeiro
Ricardo Reis
Athena 1, outubro de 1924, pp. 19-24.