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O que é a metafísica?

Álvaro de Campos

Athena 2, novembro de 1924, pp. 59-60.

  • O QUE É A METAPHYSICA?

    Na opinião de Fernando Pessoa, expressa no ensaio Athena , a philosophia ― isto é, a metaphysica ― não é uma sciencia, mas uma arte. Não creio que assim seja. Parece-me que Fernando Pessoa confunde o que a arte é com o que a sciencia não é. Ora o que não é sciencia, nem por isso é necessariamente arte: é simplesmente não-sciencia. Pensa Fernando Pessoa, naturalmente, que como a metaphysica não chega, nem apparentemente pode chegar, a uma conclusão verificavel, não é uma sciencia. Esquece que o que define uma actividade é o seu fim; e o fim da metaphysica é identico ao da sciencia ― conhecer factos, e não ao da arte ― substituir factos. As sciencias realizam esse fim de conhecer factos ― realizam-o umas mais, outras menos ― porque os factos que pretendem conhecer são definidos. A metaphysica procura conhecer factos in- ou mal-definidos. Mas, antes de conhecidos, todos os factos são in-definidos; e toda a sciencia, em relação a elles, está no estado da metaphysica. Por isso chamarei á metaphysica, não uma arte, mas uma sciencia virtual, poisque tende para conhecer e ainda não conhece. Se ficará sempre virtual, se o não ficará; se ha outro «plano» ou vida em que deixe de ser virtual ― são cousas que nem eu nem Fernando Pessoa sabemos, porque verdadeiramente não sabemos nada.

    Repare Fernando Pessoa que a sociologia é uma sciencia tão virtual como a metaphysica. A que conclusão, escassa que seja, se chegou já em sociologia? Positivamente, a nenhuma. Um congresso de sociologia, occupando-se de ao menos definir essa sciencia, não o conseguiu. A politica moderna é tão complicadamente confusa porque o espirito moderno obriga-nos (talvez sem razão) a buscar uma sciencia para tudo, e, como aqui não temos uma sciencia mas só a preoccupação de a ter, cada um toma por absoluta a sociologia relativa, isto é nulla, que inventou ou que, mais ou menos estropiadamente, assimilou de outro que tambem no assumpto não sabia nada. Compare Fernando Pessoa as discussões dos escholasticos com, sobretudo, as dos socialistas, communistas e anarchistas modernos. É o mesmo especulativismo de manicomio, ressalvando que os escholasticos eram subtis, disciplinados no raciocinio e inoffensivos, e os modernos «avançados» (como a si-proprios se chamam, como se houvesse «avanço» onde não ha sciencia) são estupidos, confusos e, dada a pseudo-semi-cultura da epocha, incommodos. Discutir quantos anjos podem convenientemente fixar-se na ponta de uma agulha, pode ser improficuo; mas não é menos improficuo ― e é com certeza mais engraçado ― que discutir qual será ou deve ser o regimen humanitario (e porque não anti-humanitario?) e equitativo (e porque não mais injusto e desegual do que o presente?) em que viverá a humanidade futura (e que sabemos nós, que ignoramos toda e qualquer lei sociologica, que desconhecemos portanto, mesmo sob a acção d’ellas, quaes são as forças naturaes que actualmente nos regem e arrastam e para onde, o que será a humanidade futura, o que quererá ― pois pode não querer para si o que qualquer de nós quer para ella ―, ou mesmo se haverá humanidade futura, ou um cataclysmo destruidor da terra, e da nossa sociologia ainda incompleta, e dos humanitarismos de byzantinos que não sabem ler?)

    Repare ainda Fernando Pessoa no facto — que aliás cita em outra connexão ― de que a sciencia tende para ser mathematica á medida que se aperfeiçôa, para reduzir tudo a formulas «abstractas», precisas, onde é maxima a libertação das «equações pessoaes», isto é, dos erros de observação e coordenação produzidos pela fallibilidade dos sentidos e do entendimento do observador *.Convém que, para prevenção dos leigos, se faça uma observação, embora digressiva, a este respeito. As sciencias, ao approximarem-se do estado «mathematico», tornam-se mais precisas; é porém duvidoso que, por isso, se tornem mais certas. Tanto os puros mathematicos como os leigos em mathematica tendem a attribuir a esta sciencia um character de «certeza» que não é necessariamente exacto. A mathematica é uma linguagem perfeita, mais nada. Ha a considerar a relatividade dos proprios principios mathematicos ― não a simples relatividade condicional, conhecida ha muito de todos que sabem que para muita applicação practica, isto é, verdadeiramente scientifica, da mathematica, é preciso introduzir coefficientes de correcção; mas uma relatividade mesmo incondicional, sobejamente demonstrada já, por exemplo e para a geometria, pela existencia de geometrias não-euclideanas, tão «certas» na applicação como a «clássica». Convém ainda avisar esses mesmos leigos que a expressão «relatividade» é aqui empregada no seu sentido tradicional e logico e não no sentido, aliás infeliz e absurdo, em que se chama «da relatividade» á theoria de Einstein, que é simplesmente uma theoria, primeiro restricta, depois generalizada, do movimento relativo. Ora «formulas abstractas» é justamente o que a metaphysica procura. E a mathematica, nos seus niveis «superiores», confina com a metaphysica, ou, pelo menos, com ideias metaphysicas. Tudo isto não quer dizer, é certo, que a metaphysica venha a ser mais que uma sciencia virtual, ou que não venha a ser mais. Quer dizer apenas que ella é effectivamente, não uma arte, mas uma sciencia virtual.

    Pasmarão talvez d’estas considerações os que leram o meu Ultimatum , no Portugal Futurista (1917). Nesse Ultimatum lê-se sobre a philosophia uma opinião que parece, salvo que a precedeu, exactamente a mesma que a de Fernando Pessoa. Não é bem assim. A conclusão practica pode realmente ser identica, mas a conclusão theorica, que é a practica para uma theoria, é differente.

    A minha theoria, em resumo, era que (1) se deve substituir a philosophia por philosophias, isto é, mudar de metaphysica como de camisa, substituindo á metaphysica procura da verdade a metaphysica procura da emoção e do interesse; e que (2) se deve substituir a metaphysica pela sciencia.

    E facil de ver como esta theoria, tendo na practica quasi os mesmos resultados que o pensamento de Fernando Pessoa, é differente d’elle. Não rejeito a metaphysica, rejeito as sciencias virtuaes todas, isto é, todas as sciencias que não se approximaram ainda do estado, vá, «mathematico»; mas, para não desaproveitar essas sciencias virtuaes, que, porque existem, representam uma necessidade humana, faço artes d’ellas, ou, antes, proponho que se faça artes d’ellas ― da metaphysica, metaphysicas varias, buscando arranjar systemas do universo coherentes e engraçados, mas sem lhes ligar intenção alguma de verdade, exactamente como em arte se descreve e expõe uma emoção interessante, sem se considerar se corresponde ou não a uma verdade objectiva de qualquer especie.

    É por esta mesma razão, por que substituo por artes as sciencias virtuaes no campo subjectivo, para não desamparar o desejo ou ambição humana que as faz existir, e exige, como todos os desejos, uma satisfacção embora illusoria, que substituo as sciencias virtuaes pelas sciencias reaes no campo objectivo.

    Ponhamos ainda mais a claro a discordancia entre mim e Fernando Pessoa. Para elle a metaphysica é essencialmente arte, e a sociologia, de que não falla, é naturalmente, sciencia. Para mim são, ambas e egualmente, essencialmente sciencias, não o sendo porém ainda, nem talvez nunca, mas por uma razão extrinseca e não intrinseca. Proponho pois que se substituam por artes emquanto não são effectivamente sciencias, o que pode ser que seja sempre, dando-se então na practica, entre a minha theoria e a de Fernando Pessoa, aquella coincidencia de effeitos que não é rara entre theorias não só diversas, mas absolutamente oppostas.

    Esclareço ainda mais... A metaphysica pode ser uma actividade scientifica, mas tambem pode ser uma actividade artistica. Como actividade scientifica, virtual que seja, procura conhecer; como actividade artistica, procura sentir. O campo da metaphysica é o abstracto e o absoluto. Ora o abstracto e o absoluto podem ser sentidos, e não só pensados, pela simples razão de que tudo pode ser, e é, sentido. O abstracto pode ser considerado, ou sentido, como não-concreto, ou como directamente abstracto, isto é, relativamente ou absolutamente. A emoção do abstracto como não-concreto ― isto é, indefinido ― é a base, ou mesmo a essencia, do sentimento religioso, incluindo neste sentimento tanto a religiosidade do Além, como a religiosidade laica de uma humanidade futura, porque, desde que se forme uma visão de uma humanidade definitiva, ou de um ideal politico definitivo, isto é absoluto, sente-se não-concretamente, porque se sente em relação á realidade concreta, mas em opposição ao «fluxo e refluxo eterno», que é a base d’ella. A emoção do abstracto como abstracto ― isto é, definido ― é a base, ou mesmo a essencia, do sentimento metaphysico. O sentimento metaphysico e o religioso são directamente oppostos, o que se vê claramente na infecundidade metaphysica (a falta de grandes originalidades metaphysicas) em epochas como a nossa, em que a especulação social utopica é o phenomeno marcante, e não haveria metaphysica alguma se não houvesse deficiencia da outra parte do espirito religioso, e aquella liberdade de pensamento que estimula toda a especie de especulação; ou como a Edade Media, perdida na adaptação theologica de metaphysicas gregas, e em cuja noite caliginosa só de vez em quando brilha metaphysicamente o astro breve de uma heresia.

    O sentimento religioso é inteiramente irracionalizavel, nem pode haver theologia, ou sociologia utopica, senão por engano ou doença. O sentimento metaphysico é racionalizavel, como todo o sentimento de uma cousa definida, que basta tornar-se inteiramente definida para se tornar materia racional, ou scientifica. Proponho eu, simplesmente, que a materia da metaphysica, emquanto não está inteiramente definida, e portanto em estado de se pensar, e a metaphysica se tornar sciencia, seja ao menos sentida, e a metaphysica seja arte; visto que tudo, bom ou mau, verdadeiro ou falso, tem afinal, porque existe, um direito vital a existir.

    A minha theoria esthetica e social no Ultimatum resume-se nisto: na irracionalização das actividades que não são (pelo menos ainda) racionalizaveis. Como a metaphysica é uma sciencia virtual, e a sociologia é outra, proponho a irracionalização de ambas ― isto é, a metaphysica tornada arte, o que a irracionaliza porque lhe tira a sua finalidade propria; e a sociologia tornada só a politica, o que a irracionaliza porque a torna practica quando ella é theorica. Não proponho a substituição da metaphysica pela religião e da sociologia pelo utopismo social, porque isso seria, não irracionalizar, mas subracionalizar, essas actividades, dando-lhes, não uma finalidade diversa, mas um grau inferior da sua propria finalidade.

    É isto, em resumo, o que defendi no meu Ultimatum . E as theorias, politica e esthetica, inteiramente originaes e novas, que proponho nessa proclamação, são, por uma razão logica, inteiramente irracionaes, exactamente como a vida.

    Alvaro de Campos

  • O QUE É A METAFÍSICA?

    Na opinião de Fernando Pessoa, expressa no ensaio Athena , a filosofia ― isto é, a metafísica ― não é uma ciência, mas uma arte. Não creio que assim seja. Parece-me que Fernando Pessoa confunde o que a arte é com o que a ciência não é. Ora o que não é ciência, nem por isso é necessariamente arte: é simplesmente não-ciência. Pensa Fernando Pessoa, naturalmente, que como a metafísica não chega, nem aparentemente pode chegar, a uma conclusão verificável, não é uma ciência. Esquece que o que define uma atividade é o seu fim; e o fim da metafísica é idêntico ao da ciência ― conhecer factos, e não ao da arte ― substituir factos. As ciências realizam esse fim de conhecer factos ― realizam-no umas mais, outras menos ― porque os factos que pretendem conhecer são definidos. A metafísica procura conhecer factos in- ou mal-definidos. Mas, antes de conhecidos, todos os factos são indefinidos; e toda a ciência, em relação a eles, está no estado da metafísica. Por isso chamarei à metafísica, não uma arte, mas uma ciência virtual, pois que tende para conhecer e ainda não conhece. Se ficará sempre virtual, se o não ficará; se há outro «plano» ou vida em que deixe de ser virtual ― são coisas que nem eu nem Fernando Pessoa sabemos, porque verdadeiramente não sabemos nada.

    Repare Fernando Pessoa que a sociologia é uma ciência tão virtual como a metafísica. A que conclusão, escassa que seja, se chegou já em sociologia? Positivamente, a nenhuma. Um congresso de sociologia, ocupando-se de ao menos definir essa ciência, não o conseguiu. A política moderna é tão complicadamente confusa porque o espírito moderno obriga-nos (talvez sem razão) a buscar uma ciência para tudo, e, como aqui não temos uma ciência mas só a preocupação de a ter, cada um toma por absoluta a sociologia relativa, isto é nula, que inventou ou que, mais ou menos estropiadamente, assimilou de outro que também no assunto não sabia nada. Compare Fernando Pessoa as discussões dos escolásticos com, sobretudo, as dos socialistas, comunistas e anarquistas modernos. É o mesmo especulativismo de manicómio, ressalvando que os escolásticos eram subtis, disciplinados no raciocínio e inofensivos, e os modernos «avançados» (como a si próprios se chamam, como se houvesse «avanço» onde não há ciência) são estúpidos, confusos e, dada a pseudossemicultura da época, incómodos. Discutir quantos anjos podem convenientemente fixar-se na ponta de uma agulha, pode ser improfícuo; mas não é menos improfícuo ― e é com certeza mais engraçado ― que discutir qual será ou deve ser o regímen humanitário (e porque não anti-humanitário?) e equitativo (e porque não mais injusto e desigual do que o presente?) em que viverá a humanidade futura (e que sabemos nós, que ignoramos toda e qualquer lei sociológica, que desconhecemos portanto, mesmo sob a ação delas, quais são as forças naturais que atualmente nos regem e arrastam e para onde, o que será a humanidade futura, o que quererá ― pois pode não querer para si o que qualquer de nós quer para ela ―, ou mesmo se haverá humanidade futura, ou um cataclismo destruidor da terra, e da nossa sociologia ainda incompleta, e dos humanitarismos de bizantinos que não sabem ler?)

    Repare ainda Fernando Pessoa no facto — que aliás cita em outra conexão ― de que a ciência tende para ser matemática à medida que se aperfeiçoa, para reduzir tudo a fórmulas «abstratas», precisas, onde é máxima a libertação das «equações pessoais», isto é, dos erros de observação e coordenação produzidos pela falibilidade dos sentidos e do entendimento do observador *.Convém que, para prevenção dos leigos, se faça uma observação, embora digressiva, a este respeito. As ciências, ao aproximarem-se do estado «matemático», tornam-se mais precisas; é porém duvidoso que, por isso, se tornem mais certas. Tanto os puros matemáticos como os leigos em matemática tendem a atribuir a esta ciência um carácter de «certeza» que não é necessariamente exato. A matemática é uma linguagem perfeita, mais nada. Há a considerar a relatividade dos próprios princípios matemáticos ― não a simples relatividade condicional, conhecida há muito de todos que sabem que para muita aplicação prática, isto é, verdadeiramente científica, da matemática, é preciso introduzir coeficientes de correção; mas uma relatividade mesmo incondicional, sobejamente demonstrada já, por exemplo e para a geometria, pela existência de geometrias não-euclidianas, tão «certas» na aplicação como a «clássica». Convém ainda avisar esses mesmos leigos que a expressão «relatividade» é aqui empregada no seu sentido tradicional e lógico e não no sentido, aliás infeliz e absurdo, em que se chama «da relatividade» à teoria de Einstein, que é simplesmente uma teoria, primeiro restrita, depois generalizada, do movimento relativo. Ora «fórmulas abstratas» é justamente o que a metafísica procura. E a matemática, nos seus níveis «superiores», confina com a metafísica, ou, pelo menos, com ideias metafísicas. Tudo isto não quer dizer, é certo, que a metafísica venha a ser mais que uma ciência virtual, ou que não venha a ser mais. Quer dizer apenas que ela é efetivamente, não uma arte, mas uma ciência virtual.

    Pasmarão talvez destas considerações os que leram o meu Ultimatum, no Portugal Futurista (1917). Nesse Ultimatum lê-se sobre a filosofia uma opinião que parece, salvo que a precedeu, exatamente a mesma que a de Fernando Pessoa. Não é bem assim. A conclusão prática pode realmente ser idêntica, mas a conclusão teórica, que é a prática para uma teoria, é diferente.

    A minha teoria, em resumo, era que (1) se deve substituir a filosofia por filosofias, isto é, mudar de metafísica como de camisa, substituindo à metafísica procura da verdade a metafísica procura da emoção e do interesse; e que (2) se deve substituir a metafísica pela ciência.

    É fácil de ver como esta teoria, tendo na prática quase os mesmos resultados que o pensamento de Fernando Pessoa, é diferente dele. Não rejeito a metafísica, rejeito as ciências virtuais todas, isto é, todas as ciências que não se aproximaram ainda do estado, vá, «matemático»; mas, para não desaproveitar essas ciências virtuais, que, porque existem, representam uma necessidade humana, faço artes delas, ou, antes, proponho que se faça artes delas ― da metafísica, metafísicas várias, buscando arranjar sistemas do universo coerentes e engraçados, mas sem lhes ligar intenção alguma de verdade, exatamente como em arte se descreve e expõe uma emoção interessante, sem se considerar se corresponde ou não a uma verdade objetiva de qualquer espécie.

    É por esta mesma razão, por que substituo por artes as ciências virtuais no campo subjetivo, para não desamparar o desejo ou ambição humana que as faz existir, e exige, como todos os desejos, uma satisfação embora ilusória, que substituo as ciências virtuais pelas ciências reais no campo objetivo.

    Ponhamos ainda mais a claro a discordância entre mim e Fernando Pessoa. Para ele a metafísica é essencialmente arte, e a sociologia, de que não fala, é naturalmente, ciência. Para mim são, ambas e igualmente, essencialmente ciências, não o sendo porém ainda, nem talvez nunca, mas por uma razão extrínseca e não intrínseca. Proponho pois que se substituam por artes enquanto não são efetivamente ciências, o que pode ser que seja sempre, dando-se então na prática, entre a minha teoria e a de Fernando Pessoa, aquela coincidência de efeitos que não é rara entre teorias não só diversas, mas absolutamente opostas.

    Esclareço ainda mais... A metafísica pode ser uma atividade científica, mas também pode ser uma atividade artística. Como atividade científica, virtual que seja, procura conhecer; como atividade artística, procura sentir. O campo da metafísica é o abstrato e o absoluto. Ora o abstrato e o absoluto podem ser sentidos, e não só pensados, pela simples razão de que tudo pode ser, e é, sentido. O abstrato pode ser considerado, ou sentido, como não-concreto, ou como diretamente abstrato, isto é, relativamente ou absolutamente. A emoção do abstrato como não-concreto ― isto é, indefinido ― é a base, ou mesmo a essência, do sentimento religioso, incluindo neste sentimento tanto a religiosidade do Além, como a religiosidade laica de uma humanidade futura, porque, desde que se forme uma visão de uma humanidade definitiva, ou de um ideal político definitivo, isto é absoluto, sente-se não-concretamente, porque se sente em relação à realidade concreta, mas em oposição ao «fluxo e refluxo eterno», que é a base dela. A emoção do abstrato como abstrato ― isto é, definido ― é a base ou mesmo a essência, do sentimento metafísico. O sentimento metafísico e o religioso são diretamente opostos, o que se vê claramente na infecundidade metafísica (a falta de grandes originalidades metafísicas) em épocas como a nossa, em que a especulação social utópica é o fenómeno marcante, e não haveria metafísica alguma se não houvesse deficiência da outra parte do espírito religioso, e aquela liberdade de pensamento que estimula toda a espécie de especulação; ou como a Idade Média, perdida na adaptação teológica de metafísicas gregas, e em cuja noite caliginosa só de vez em quando brilha metafisicamente o astro breve de uma heresia.

    O sentimento religioso é inteiramente irracionalizável, nem pode haver teologia, ou sociologia utópica, senão por engano ou doença. O sentimento metafísico é racionalizável, como todo o sentimento de uma coisa definida, que basta tornar-se inteiramente definida para se tornar matéria racional, ou científica. Proponho eu, simplesmente, que a matéria da metafísica, enquanto não está inteiramente definida, e portanto em estado de se pensar, e a metafísica se tornar ciência, seja ao menos sentida, e a metafísica seja arte; visto que tudo, bom ou mau, verdadeiro ou falso, tem afinal, porque existe, um direito vital a existir.

    A minha teoria estética e social no Ultimatum resume-se nisto: na irracionalização das atividades que não são (pelo menos ainda) racionalizáveis. Como a metafísica é uma ciência virtual, e a sociologia é outra, proponho a irracionalização de ambas ― isto é, a metafísica tornada arte, o que a irracionaliza porque lhe tira a sua finalidade própria; e a sociologia tornada só a política, o que a irracionaliza porque a torna prática quando ela é teórica. Não proponho a substituição da metafísica pela religião e da sociologia pelo utopismo social, porque isso seria, não irracionalizar, mas subracionalizar, essas atividades, dando-lhes, não uma finalidade diversa, mas um grau inferior da sua própria finalidade.

    É isto, em resumo, o que defendi no meu Ultimatum. E as teorias, política e estética, inteiramente originais e novas, que proponho nessa proclamação, são, por uma razão lógica, inteiramente irracionais, exatamente como a vida.

    Álvaro de Campos

  • Names

    • Albert Einstein
    • Fernando Pessoa
    • Álvaro de Campos

    Titles

    • Athena
    • Ultimatum

    Periodicals

    • Portugal Futurista