English|Português|Deutsch

A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada

Fernando Pessoa

A Águia 4, abril de 1912, pp. 101-107.

  • [101]

    A Nova Poesia Portugueza Sociologicamente Considerada

    I

    Ao movimento litterario representativo e peculiar da nascente geração portugueza tem sido feito pela opinião publica o favor de o não comprehender. E esse movimento que, sobretudo na poesia, com crescente nitidez accusa a sua individualidade representativa, não tem sido comprehendido, porque uma parte do publico, a que tem mais de trinta annos, está inadaptabilisavel, por já velha, a esse movimento, e consta, perante elle, de incomprehendedores-natos; porque outra parte, ou por circumstancias de bacharelosa especie educativa, ou por descuidada na manutenção espiritual do sentimento de raça, ou ainda por sentimentos de desviado e esteril enthusiasmo gerados por absorpção na intensa e mesquinha vida politica nossa, está collocada n'um estado de pseudo-alma descriptivel como sendo de incomprehendedores-de-occasião; e porque a outra, restante, aquella de quem são os novos poetas e litteratos e os que os acompanham no obscuro sentimento racial que os guia, não tomou ainda consciencia de si como o que realmente é, porquanto o movimento poetico actual é ainda embryão quanto a tendencias, nebulosa quanto a idéas que de si ou de outras cousas tenha.

    Urge que — pondo de parte mysticismos de pensamento e de expressão, uteis apenas para despertar pelo ridiculo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o interesse alegre do inimigo social — com raciocinios e cingentes analyses se penetre na comprehensão do actual movimento poetico portuguez, se pregunte á alma nacional, n'elle espelhada, o que pretende e a que tende, e se ponha em termos de comprehensibilidade logica o valor e a significação, perante a sociologia, d'esse movimento litterario e artistico.

    II

    Em primeiro logar, é evidente que aquillo a que se chama uma corrente litteraria deve de algum modo ser representativo do estado social da epoca e do paiz em que apparece. Porque uma corrente litteraria não é senão o tom especial que de commum teem os escriptores de determinado periodo, e que representa, postas de parte as inevitaveis peculiaridades individuaes, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito, que, por [102]ser commum a esses escriptores, deve forçosamente ter raiz no que de commum elles teem, e isso é a epoca e o paiz em que vivem ou em que se integram.

    E se a litteratura é fatalmente a expressão do estado social de um periodo politico, à fortiori o deve ser, a dentro da litteratura, o genero litterario que mais de perto cinge e mais transparentemente cobre o sentimento e a idéa expressos — e esse genero litterario é a poesia.

    Não é isto, porém, que de momento importa. Saber pela litteratura as idéas de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que não tem outro meio de a tornar presente ao seu raciocinio. O que nos occupa é saber se a litteratura nos poderá ser um indicador sociologico, se nos pode ser ponteiro para indicar a que horas da civilisação estamos, ou, para fallar com clareza, para nos informar do estado de vitalidade e exuberancia de vida em que se encontra uma nação ou época, para que, pela litteratura simplesmente, possamos prever ou concluir o que espera o paiz em que essa litteratura é actual. E é precisamente isto que à priori se não pode imaginar. Reportemo-nos, pois, á evidencia analysada dos factos.

    Desbravemos, porém, o terreno, aclarando alguns termos essenciaes, e simplificando, para não sermos longos, as condições da analyse projectada.

    Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade commercial, cousas secundarias e por assim dizer physicas nas nações; tem de se entender a sua exuberancia de alma, isto é, a sua capacidade de crear, não já simples sciencia, o que é restricto e mecanico, mas novos moldes, novas idéas geraes, para o movimento civilizacional a que pertence. É por isso que ninguem compara a grandeza ruidosa de Roma á super-grandeza da Grecia. A Grecia creou uma civilização, que Roma simplesmente espalhou, distribuiu. Temos ruinas romanas e idéas gregas. Roma é, salvo o que sobremorre nas formulas invitaes dos codigos, uma memoria de uma gloria; a Grecia sobrevive-se nos nossos idéaes e nos nossos sentimentos.

    Servir-nos-hão de material para a analyse duas nações apenas — a Inglaterra e a França; e isto porque, tendo essas uma unidade nacional, uma continuidade de vida e uma influencia civilizacional accentuada, o problema se limita simplesmente á analyse que desejamos fazer, sem impôr, como imporia o estudo de qualquér nação ou mais complexa, ou mais affastada no tempo, uma previa analyse differencial. A escassez do material, porém, importa apenas quando é superficial a analyse; porque, se pour expliquer un brin de paille il faut démonter tout le systéme de l'univers, Rémy de Gourmont, Le Chemin du Velours ao raciocinador ideal bastaria, visto que o systema do universo se acha logicamente contido no brin de paille, analysal-o bem, a elle brin de paille, para deduzir o systema do universo.

    Tomaremos a Inglaterra e a França para material de analyse. E tomaremos periodos nitidos, pois que o espaço não permitte a co-analyse de periodos litteraria- ou politicamente embryonarios.

    [103]

    III

    A historia litteraria da Inglaterra mostra trez periodos distinctos, ainda que subdivisiveis em sub-periodos — o isabelliano, que vae de 1580 approximadamente até a um ponto pouco mais ou menos coincidente com o fim da Republica; o tratavel de "neo-classico" que, pouco depois começando, ocupa quasi todo o século dezoito, começando porém a morrer desde 1780, approximadamente; e o moderno, que vem desde então até aos nossos dias. D'estes tres periodos o primeiro impõe-se como por muito o maior, não só por ser mais alto o tom poetico geral do periodo, mas tambem porque as suas culminancias poeticas ― Spenser, Shakespeare e Milton — põem na sombra quantos nomes illustres os outros dois periodos apresentem. — O segundo periodo é inferior aos outros dois: o tom poetico é aquelle, intoleravel, que a França do ancien régime derramou pela Europa de que tinha a hegemonia social. — O terceiro periodo contém figuras que, sem serem supremas, são como Coleridge, Shelley ou Browning, grandes indiscutivelmente.

    Vejamos agora a que periodos politicos estas epocas litterarias correspondem. A epoca isabelliana corresponde ao periodo da vida ingleza cuja realisação foi feita pela Republica e na pessoa, preëminentemente, de Cromwell. Foi um periodo creador; n'elle deu a Inglaterra ao mundo moderno um dos grandes principios civilizacionaes que lhe são peculiares — o de governo popular, principio que depois a Revolução Francesa, parcamente creadora, simplesmente transformou no de democracia republicana. — O segundo periodo da vida politica ingleza, o que vem desde a queda da Republica, culmina na revolução, de mera substituição dynastica, de 1688, e vem morrer por 1780 nas almas, e de facto com a reforma eleitoral de 1832, é absolutamente nullo e esteril para a Inglaterra; n'elle ella nada creou, nem mesmo a sua propria grandeza, visto que a hegemonia social na Europa era então da França. N'este segundo periodo a Inglaterra não fez senão ir realisando, apathica- e frouxamente, o principio de governo popular que havia creado. — Também no terceiro periodo a Inglaterra nada creou de civilizacional; creou a sua propria grandeza e nada mais — visto que a hegemonia européa tem sido mais sua do que d'outra nação no seculo dezenove, conforme o vincaram para a historia Nelson em Trafalgar e Wellington em Waterloo.

    Virando-nos agora para a França, e desprezando, como já dissémos, o embryonario e informe, vemos egualmente trez periodos, incoincidentes porém, no tempo, com os trez periodos inglezes. O primeiro periodo acompanha o ancien régime, culmina no tempo de Luiz XIV e dura até ao fim do seculo dezoito, emprestando o tom á litteratura européa. O segundo periodo, o romantico, começa depois da queda do ancien régime e vae terminando á medida que o republicanismo se vae realisando nas almas, de 1848 a 1870, approximada- mas incorrectamente. De então para cá, em seguida ao periodo (de 1871 a 1881 pouco mais ou menos) de lenta conso[104]lidação republicana, vem o terceiro periodo, aquelle a que caracterizam o realismo, o symbolismo e outros anti-romantismos (1). Uma analyse impossivel aqui, por demorada, mostraria como é sociologicamente certa esta divisão, em apparencia anti-historica ao ponto de ser de todo absurda — esta divisão e a que, de periodos politicos, vae a seguir.

    Vejamos agora como se nos mostram os correspondentes periodos politicos. O primeiro, ancien régime, foi um periodo em que a França nada creou para a civilização, visto que creou apenas a sua propria grandeza e a correspondente hegemonia social européa, cujo reflexo longinquo e fraquejante é a influencia de que ainda gosa. O segundo periodo é aquelle que, precipitando-se na prematura Revolução Francesa, se vae realisando só depois, nas almas, de 1848 a 1870, pouco mais ou menos, e é n'este periodo que a França cria para a civilização a idéa de democracia republicana. Não a cria, é claro, tão creadoramente como a Inglaterra de Cromwell, que a origina no mundo moderno; torna-a porém mais intensa e nitida, desenvolve-a — o que é também, ainda que secundariamente, uma creação. Finalmente, no terceiro periodo, o de 1870 para cá, a França nada cria para a civilização, nem mesmo a sua propria grandeza cria, visto que decahe em valor européo: vae vivendo, como a Inglaterra no segundo periodo, e realizando, apathica- e despiciendamente, o principio de democracia republicana que em anterior periodo creára.

    Posto isto, analysemos. Em primeiro logar é evidente a analogia, quanto a valor civilizacional, e, portanto, a vitalidade nacional, entre o primeiro periodo francez e terceiro inglez, entre o segundo periodo francez e o primeiro inglez, e entre o terceiro periodo francez e o segundo da Inglaterra. Tão perfeita é a analogia social e civilizacional como a analogia litteraria. A litteratura ingleza atinge o seu auge no primeiro, a franceza no segundo periodo. São relativamente ricas, a ingleza no terceiro periodo, a franceza no primeiro. E a ingleza no seu periodo segundo e a franceza no terceiro seu estão no mesmo nivel de abatimento litterario perante os outros periodos. — Vemos, pois, que o valor dos creadores litterarios corresponde ao valor creador das épocas a que correspondem; de modo que a litteratura não só traduz as idéas da sua época mas — e é isto que importa que fixemos — o valor da litteratura, perante a historia litteraria, corresponde ao valor da epoca, perante a historia da civilização.

    Avançando na analyse, porém, revela-se-nos que a posição chronologica das litteraturas se dá, relativamente aos correspondentes movimentos sociaes, de modo diverso nos trez periodos. Assim, no primeiro periodo, o creador, da Inglaterra, o movimento litterario que culmina em Shakespeare (entre 1590 e 1610) precede o movimento politico, que só começa ao decahir elle. E, em França, o movimento romantico vae decahindo á medida que se vae realisando nos espiritos o correspondente, e socialmente exuberante, [105] movimento politico. — No segundo periodo inglez e terceiro francez, analogos como já vimos, a corrente litteraria vem depois da corrente politica que lhe corresponde; como em França se vê pelo apparecimento dos movimentos symbolista, realista e outros, claramente, nos annos que sucedem áquelles em que se consolidou a republica; e em Inglaterra pelo facto de Pope, em quem a corrente litteraria culmina (Dryden, talvez maior, é um poeta de transição, pertencente em parte ainda ao periodo anterior) sêr da geração seguinte á dos consolidadores da nova formula, caracteristica da época, a de monarchia constitucional. — No terceiro periodo inglez e primeiro francez temos a coincidencia no tempo entre a corrente e culminancias litterarias e o movimento e culminancias politicos. É sob Luiz XIV que a vida litteraria é de mais valor, e o movimento reformista inglez (de 1770 a 1832), que involve em si as causas da hegemonia ingleza moderna e inclue as guerras em que ella se fixou, coincide com o romantismo britannico.

    Examinemos agora quaes os caracteristicos interiores d'estas correntes litterarias. As correntes litterarias do segundo periodo inglez e o terceiro francez — aquelles periodos em que essas nações nada crearam, nem para os outros nem para si — offerecem como mais importante facto espiritual a desnacionalização da litteratura; visto que a litteratura ingleza do seculo dezoito é vazada em moldes francezes, e a litteratura franceza de 1880 para cá é tudo menos franceza de espirito. Assim, para dar o unico exemplo que o espaço pode admittir, o symbolismo, essencialmente confuso, lyrico e religioso, é absolutamente contrario ao espirito lucido, rhetorico e sceptico do povo francez. — As correntes litterarias do terceiro periodo inglez e primeiro francez — as dos periodos em que os paizes crearam a sua propria grandeza e hegemonia social, mas, de civilizacional, nada — mostram um equilibrio entre o espirito nacional e a influencia estrangeira: assim, a influencia allemã é patente mas não dominante no romantismo inglez, e a influencia da antiguidade tão importante como a do espirito nacional na litteratura dos seculos dezesete e dezoito em França. — Finalmente, nos periodos creadores — o primeiro inglez e segundo francez — temos na litteratura o espirito nacional patente e dominante, absorvendo e absolutamente eliminando qualquer influencia estrangeira que haja. Assim, nada mais francez do que Victor Hugo com a sua rhetorica, a sua pseudo-profundeza, a sua lucidez epigrammatica em pleno seio do lyrismo, onde não está bem. E Spenser, Shakespeare e Milton — mas Spenser e Shakespeare mais do que Milton — são inglezes inconfundivelmente.

    IV

    Ainda que rapida, já ha n'esta analyse elementos para a apreciação ponderada da moderna poesia portugueza.

    O primeiro facto que se nota é que a actual corrente litteraria portugueza é absolutamente nacional, e não só nacional com a [106]inevitabilidade bruta de um canto popular, mas nacional com idéas especiaes, sentimentos especiaes, modos de expressão especiaes e distinctivos de um movimento litterario completamente portuguez; e, de resto, se fosse menos, não seria um movimento litterario, mas uma especie de traje psychico nacional, relegavel da categoria de movimento de arte para a, para este caso sociologico nulla, de um mero costume caracteristico.

    O segundo facto a notar é que o movimento poetico portuguez contém individualidades de vincado valor: não são Miltons nem Shakespeares, mas são gente que se extrema, além de pelo tom, que é da corrente, pelo valor mesmo, d'entre os contemporaneos europeus, com excepção de um ou dois italianos, e esses não integrados em movimento ou corrente alguma que, de distinctiva ou nacional, tenha sombra de direito a ser comparada com a hodierna corrente poetica lusitana.

    O terceiro e ultimo facto que se impõe é que este movimento poetico dá-se coincidentemente com um periodo de pobre e deprimida vida social, de mesquinha politica, de difficuldades e obstaculos de toda a especie á mais quotidiana paz individual e social, e á mais rudimentar confiança ou segurança n'um, ou d'um, futuro.

    Vistos estes elementos sociologicos do problema, salta aos olhos a inevitavel conclusão. É ella a mais extraordinaria, a mais consoladora, a mais estonteante que se pode ousar esperar. É ella de ordem a coincidir absolutamente com aquellas intuições propheticas do poeta Teixeira de Pascoaes sobre a futura civilização lusitana, sobre o futuro glorioso que espera a Patria Portugueza. Tudo isso, que a fé e a intuição dos mysticos deu a Teixeira de Pascoaes, vae o nosso raciocinio mathematicamente confirmar.

    É que os caracteristicos que acabamos de descobrir no nosso actual movimento poetico indicam absolutamente a sua analogia com as litteraturas ingleza do primeiro, e franceza do segundo periodo, e, portanto, impõem que se conclua d'ahi a fatal analogia com as épocas de que aquelas litteraturas são representativas.

    A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da completa nacionalidade e novidade do movimento. Temos, depois, o caso de se tratar de uma corrente litteraria contendo poetas de indiscutivel valor. E note-se — para o caso de se argumentar que nenhum Shakespeare nem Victor Hugo appareceu ainda na corrente litteraria portugueza — que esta corrente vae ainda no principio do seu principio, gradualmente porém tornando-se mais firme, mais nitida, mais complexa. E isto leva a crêr que deve estar para muito breve o inevitavel apparecimento do poeta ou poetas supremos d'esta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito proximo a ruidosa confirmação d'este deduzidissimo asserto?

    Pode objectar-se, além de muita cousa desdenhavel n'um artigo que tem de não ser longo, que o actual momento politico não [107]parece de ordem a gerar genios poeticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluivel se nos affigura o proximo apparecer d'um supra-Camões na nossa terra. É precisamente este detalhe que marca a completa analogia da actual corrente litteraria portugueza com aquelas, franceza e ingleza, onde o nosso raciocinio descobriu o acompanhamento litterario das grandes épocas creadoras. Porque a corrente litteraria, como vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos signal de renascença na vida politica, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma, duas ou trez gerações depois do auge da corrente litteraria?

    Ousemos concluir isto, onde o raciocinio excede o sonho: que a actual corrente litteraria portugueza é completa- e absolutamente o principio de uma grande corrente litteraria, das que precedem as grandes épocas creadoras das grandes nações de quem a civilização é filha.

    Que o mal e o pouco do presente nos não deprimam nem illudam: são elles que confirmam o nosso raciocinio. Tenhamos a coragem de ir para aquela louca alegria que vem das bandas para onde o raciocinio nos leva! Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinaria, um resurgimento assombroso. O ponto de luz até onde essa renascença nos deve levar não se pode dizer n'este breve estudo; desacompanhada de um raciocinio confirmativo, essa previsão pareceria um lucido sonho de louco.

    Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal logica, n'um futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e acção, em sonho e vida, esteja comnosco, para que nenhuma das nossas almas falte á sua missão de hoje, de crear o supra-Portugal de amanhã.

    Fernando Pessôa.

  • [101]

    A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada

    I

    Ao movimento literário representativo e peculiar da nascente geração portuguesa tem sido feito pela opinião pública o favor de o não compreender. E esse movimento que, sobretudo na poesia, com crescente nitidez acusa a sua individualidade representativa, não tem sido compreendido, porque uma parte do público, a que tem mais de trinta anos, está inadaptabilizável, por já velha, a esse movimento, e consta, perante ele, de incompreendedores-natos; porque outra parte, ou por circunstâncias de bacharelosa espécie educativa, ou por descuidada na manutenção espiritual do sentimento de raça, ou ainda por sentimentos de desviado e estéril entusiasmo gerados por absorção na intensa e mesquinha vida política nossa, está colocada num estado de pseudoalma descritível como sendo de incompreendedores-de-ocasião; e porque a outra, restante, aquela de quem são os novos poetas e literatos e os que os acompanham no obscuro sentimento racial que os guia, não tomou ainda consciência de si como o que realmente é, porquanto o movimento poético atual é ainda embrião quanto a tendências, nebulosa quanto a ideias que de si ou de outras coisas tenha.

    Urge que — pondo de parte misticismos de pensamento e de expressão, úteis apenas para despertar pelo ridículo, que a sua obscuridade para os profanos causa, o interesse alegre do inimigo social ― com raciocínios e cingentes análises se penetre na compreensão do atual movimento poético português, se pergunte à alma nacional, nele espelhada, o que pretende e a que tende, e se ponha em termos de compreensibilidade lógica o valor e a significação, perante a sociologia, desse movimento literário e artístico.

    II

    Em primeiro lugar, é evidente que aquilo a que se chama uma corrente literária deve de algum modo ser representativo do estado social da época e do país em que aparece. Porque uma corrente literária não é senão o tom especial que de comum têm os escritores de determinado período, e que representa, postas de parte as inevitáveis peculiaridades individuais, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito, que, por [102]ser comum a esses escritores, deve forçosamente ter raiz no que de comum eles têm, e isso é a época e o país em que vivem ou em que se integram.

    E se a literatura é fatalmente a expressão do estado social de um período político, à fortiori o deve ser, adentro da literatura, o género literário que mais de perto cinge e mais transparentemente cobre o sentimento e a ideia expressos ― e esse género literário é a poesia.

    Não é isto, porém, que de momento importa. Saber pela literatura as ideias de uma época só pode ter interesse para a posteridade, que não tem outro meio de a tornar presente ao seu raciocínio. O que nos ocupa é saber se a literatura nos poderá ser um indicador sociológico, se nos pode ser ponteiro para indicar a que horas da civilização estamos, ou, para falar com clareza, para nos informar do estado de vitalidade e exuberância de vida em que se encontra uma nação ou época, para que, pela literatura simplesmente, possamos prever ou concluir o que espera o país em que essa literatura é atual. E é precisamente isto que à priori se não pode imaginar. Reportemo-nos, pois, à evidência analisada dos factos.

    Desbravemos, porém, o terreno, aclarando alguns termos essenciais, e simplificando, para não sermos longos, as condições da análise projetada.

    Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se entender a sua exuberância de alma, isto é, a sua capacidade de criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas novos moldes, novas ideias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence. É por isso que ninguém compara a grandeza ruidosa de Roma à supergrandeza da Grécia. A Grécia criou uma civilização, que Roma simplesmente espalhou, distribuiu. Temos ruínas romanas e ideias gregas. Roma é, salvo o que sobremorre nas fórmulas invitais dos códigos, uma memória de uma glória; a Grécia sobrevive-se nos nossos ideais e nos nossos sentimentos.

    Servir-nos-ão de material para a análise duas nações apenas — a Inglaterra e a França; e isto porque, tendo essas uma unidade nacional, uma continuidade de vida e uma influência civilizacional acentuada, o problema se limita simplesmente à análise que desejamos fazer, sem impor, como imporia o estudo de qualquer nação ou mais complexa, ou mais afastada no tempo, uma prévia análise diferencial. A escassez do material, porém, importa apenas quando é superficial a análise; porque, se pour expliquer un brin de paille il faut démonter tout le système de l'univers, Rémy de Gourmont, Le Chemin du Velours ao raciocinador ideal bastaria, visto que o sistema do universo se acha logicamente contido no brin de paille, analisá-lo bem, a ele brin de paille, para deduzir o sistema do universo.

    Tomaremos a Inglaterra e a França para material de análise. E tomaremos períodos nítidos, pois que o espaço não permite a coanálise de períodos literária- ou politicamente embrionários.

    [103]

    III

    A história literária da Inglaterra mostra três períodos distintos, ainda que subdivisíveis em subperíodos — o isabeliano, que vai de 1580 aproximadamente até a um ponto pouco mais ou menos coincidente com o fim da República; o tratável de "neoclássico" que, pouco depois começando, ocupa quase todo o século dezoito, começando porém a morrer desde 1780, aproximadamente; e o moderno, que vem desde então até aos nossos dias. Destes três períodos o primeiro impõe-se como por muito o maior, não só por ser mais alto o tom poético geral do período, mas também porque as suas culminâncias poéticas ― Spenser, Shakespeare e Milton — põem na sombra quantos nomes ilustres os outros dois períodos apresentem. — O segundo período é inferior aos outros dois: o tom poético é aquele, intolerável, que a França do ancien régime derramou pela Europa de que tinha a hegemonia social. — O terceiro período contém figuras que, sem serem supremas, são como Coleridge, Shelley ou Browning, grandes indiscutivelmente.

    Vejamos agora a que períodos políticos estas épocas literárias correspondem. A época isabeliana corresponde ao período da vida inglesa cuja realização foi feita pela República e na pessoa, preeminentemente, de Cromwell. Foi um período criador; nele deu a Inglaterra ao mundo moderno um dos grandes princípios civilizacionais que lhe são peculiares — o de governo popular, princípio que depois a Revolução Francesa, parcamente criadora, simplesmente transformou no de democracia republicana. — O segundo período da vida política inglesa, o que vem desde a queda da República, culmina na revolução, de mera substituição dinástica, de 1688, e vem morrer por 1780 nas almas, e de facto com a reforma eleitoral de 1832, é absolutamente nulo e estéril para a Inglaterra; nele ela nada criou, nem mesmo a sua própria grandeza, visto que a hegemonia social na Europa era então da França. Neste segundo período a Inglaterra não fez senão ir realizando, apática- e frouxamente, o princípio de governo popular que havia criado. — Também no terceiro período a Inglaterra nada criou de civilizacional; criou a sua própria grandeza e nada mais — visto que a hegemonia europeia tem sido mais sua do que doutra nação no século dezanove, conforme o vincaram para a história Nelson em Trafalgar e Wellington em Waterloo.

    Virando-nos agora para a França, e desprezando, como já dissemos, o embrionário e informe, vemos igualmente três períodos, incoincidentes porém, no tempo, com os três períodos ingleses. O primeiro período acompanha o ancien régime, culmina no tempo de Luís XIV e dura até ao fim do século dezoito, emprestando o tom à literatura europeia. O segundo período, o romântico, começa depois da queda do ancien régime e vai terminando à medida que o republicanismo se vai realizando nas almas, de 1848 a 1870, aproximada- mas incorretamente. De então para cá, em seguida ao período (de 1871 a 1881 pouco mais ou menos) de lenta conso[104]lidação republicana, vem o terceiro período, aquele a que caracterizam o realismo, o simbolismo e outros antirromantismos (1). Uma análise impossível aqui, por demorada, mostraria como é sociologicamente certa esta divisão, em aparência anti-histórica ao ponto de ser de todo absurda — esta divisão e a que, de períodos políticos, vai a seguir.

    Vejamos agora como se nos mostram os correspondentes períodos políticos. O primeiro, ancien régime, foi um período em que a França nada criou para a civilização, visto que criou apenas a sua própria grandeza e a correspondente hegemonia social europeia, cujo reflexo longínquo e fraquejante é a influência de que ainda goza. O segundo período é aquele que, precipitando-se na prematura Revolução Francesa, se vai realizando só depois, nas almas, de 1848 a 1870, pouco mais ou menos, e é neste período que a França cria para a civilização a ideia de democracia republicana. Não a cria, é claro, tão criadoramente como a Inglaterra de Cromwell, que a origina no mundo moderno; torna-a porém mais intensa e nítida, desenvolve-a — o que é também, ainda que secundariamente, uma criação. Finalmente, no terceiro período, o de 1870 para cá, a França nada cria para a civilização, nem mesmo a sua própria grandeza cria, visto que decai em valor europeu: vai vivendo, como a Inglaterra no segundo período, e realizando, apática- e despiciendamente, o princípio de democracia republicana que em anterior período criara.

    Posto isto, analisemos. Em primeiro lugar é evidente a analogia, quanto a valor civilizacional, e, portanto, a vitalidade nacional, entre o primeiro período francês e terceiro inglês, entre o segundo período francês e o primeiro inglês, e entre o terceiro período francês e o segundo da Inglaterra. Tão perfeita é a analogia social e civilizacional como a analogia literária. A literatura inglesa atinge o seu auge no primeiro, a francesa no segundo período. São relativamente ricas, a inglesa no terceiro período, a francesa no primeiro. E a inglesa no seu período segundo e a francesa no terceiro seu estão no mesmo nível de abatimento literário perante os outros periodos. — Vemos, pois, que o valor dos criadores literários corresponde ao valor criador das épocas a que correspondem; de modo que a literatura não só traduz as ideias da sua época mas — e é isto que importa que fixemos — o valor da literatura, perante a história literária, corresponde ao valor da época, perante a história da civilização.

    Avançando na análise, porém, revela-se-nos que a posição cronológica das literaturas se dá, relativamente aos correspondentes movimentos sociais, de modo diverso nos três períodos. Assim, no primeiro período, o criador, da Inglaterra, o movimento literário que culmina em Shakespeare (entre 1590 e 1610) precede o movimento político, que só começa ao decair ele. E, em França, o movimento romântico vai decaindo à medida que se vai realizando nos espíritos o correspondente, e socialmente exuberante, [105]movimento político. — No segundo período inglês e terceiro francês, análogos como já vimos, a corrente literária vem depois da corrente política que lhe corresponde; como em França se vê pelo aparecimento dos movimentos simbolista, realista e outros, claramente, nos anos que sucedem àqueles em que se consolidou a república; e em Inglaterra pelo facto de Pope, em quem a corrente literária culmina (Dryden, talvez maior, é um poeta de transição, pertencente em parte ainda ao período anterior) ser da geração seguinte à dos consolidadores da nova fórmula, característica da época, a de monarquia constitucional. — No terceiro período inglês e primeiro francês temos a coincidência no tempo entre a corrente e culminâncias literárias e o movimento e culminâncias políticos. É sob Luís XIV que a vida literária é de mais valor, e o movimento reformista inglês (de 1770 a 1832), que envolve em si as causas da hegemonia inglesa moderna e inclui as guerras em que ela se fixou, coincide com o romantismo britânico.

    Examinemos agora quais os característicos interiores destas correntes literárias. As correntes literárias do segundo período inglês e o terceiro francês — aqueles períodos em que essas nações nada criaram, nem para os outros nem para si — oferecem como mais importante facto espiritual a desnacionalização da literatura; visto que a literatura inglesa do século dezoito é vazada em moldes franceses, e a literatura francesa de 1880 para cá é tudo menos francesa de espírito. Assim, para dar o único exemplo que o espaço pode admitir, o simbolismo, essencialmente confuso, lírico e religioso, é absolutamente contrário ao espírito lúcido, retórico e cético do povo francês. — As correntes literárias do terceiro período inglês e primeiro francês — as dos períodos em que os países criaram a sua própria grandeza e hegemonia social, mas, de civilizacional, nada — mostram um equilíbrio entre o espírito nacional e a influência estrangeira: assim, a influência alemã é patente mas não dominante no romantismo inglês, e a influência da antiguidade tão importante como a do espírito nacional na literatura dos séculos dezassete e dezoito em França. — Finalmente, nos períodos criadores — o primeiro inglês e segundo francês — temos na literatura o espírito nacional patente e dominante, absorvendo e absolutamente eliminando qualquer influência estrangeira que haja. Assim, nada mais francês do que Victor Hugo com a sua retórica, a sua pseudoprofundeza, a sua lucidez epigramática em pleno seio do lirismo, onde não está bem. E Spenser, Shakespeare e Milton — mas Spenser e Shakespeare mais do que Milton — são ingleses inconfundivelmente.

    IV

    Ainda que rápida, já há nesta análise elementos para a apreciação ponderada da moderna poesia portuguesa.

    O primeiro facto que se nota é que a atual corrente literária portuguesa é absolutamente nacional, e não só nacional com a [106]inevitabilidade bruta de um canto popular, mas nacional com ideias especiais, sentimentos especiais, modos de expressão especiais e distintivos de um movimento literário completamente português; e, de resto, se fosse menos, não seria um movimento literário, mas uma espécie de traje psíquico nacional, relegável da categoria de movimento de arte para a, para este caso sociológico nula, de um mero costume característico.

    O segundo facto a notar é que o movimento poético português contém individualidades de vincado valor: não são Miltons nem Shakespeares, mas são gente que se extrema, além de pelo tom, que é da corrente, pelo valor mesmo, dentre os contemporâneos europeus, com exceção de um ou dois italianos, e esses não integrados em movimento ou corrente alguma que, de distintiva ou nacional, tenha sombra de direito a ser comparada com a hodierna corrente poética lusitana.

    O terceiro e último facto que se impõe é que este movimento poético dá-se coincidentemente com um período de pobre e deprimida vida social, de mesquinha política, de dificuldades e obstáculos de toda a espécie à mais quotidiana paz individual e social, e à mais rudimentar confiança ou segurança num, ou dum, futuro.

    Vistos estes elementos sociológicos do problema, salta aos olhos a inevitável conclusão. É ela a mais extraordinária, a mais consoladora, a mais estonteante que se pode ousar esperar. É ela de ordem a coincidir absolutamente com aquelas intuições proféticas do poeta Teixeira de Pascoaes sobre a futura civilização lusitana, sobre o futuro glorioso que espera a Pátria Portuguesa. Tudo isso, que a fé e a intuição dos místicos deu a Teixeira de Pascoaes, vai o nosso raciocínio matematicamente confirmar.

    É que os característicos que acabamos de descobrir no nosso atual movimento poético indicam absolutamente a sua analogia com as literaturas inglesa do primeiro, e francesa do segundo período, e, portanto, impõem que se conclua daí a fatal analogia com as épocas de que aquelas literaturas são representativas.

    A analogia é absoluta. Temos, primeiro, a nota principal da completa nacionalidade e novidade do movimento. Temos, depois, o caso de se tratar de uma corrente literária contendo poetas de indiscutível valor. E note-se — para o caso de se argumentar que nenhum Shakespeare nem Victor Hugo apareceu ainda na corrente literária portuguesa — que esta corrente vai ainda no princípio do seu princípio, gradualmente porém tornando-se mais firme, mais nítida, mais complexa. E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos desta corrente, e da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões. Quem sabe se não estará para um futuro muito próximo a ruidosa confirmação deste deduzidíssimo asserto?

    Pode objetar-se, além de muita coisa desdenhável num artigo que tem de não ser longo, que o atual momento político não [107]parece de ordem a gerar génios poéticos supremos, de reles e mesquinho que é. Mas é precisamente por isso que mais concluível se nos afigura o próximo aparecer dum supra-Camões na nossa terra. É precisamente este detalhe que marca a completa analogia da atual corrente literária portuguesa com aquelas, francesa e inglesa, onde o nosso raciocínio descobriu o acompanhamento literário das grandes épocas criadoras. Porque a corrente literária, como vimos, precede sempre a corrente social nas épocas sublimes de uma nação. Que admira que não vejamos sinal de renascença na vida política, se a analogia nos manda que o vejamos apenas uma, duas ou três gerações depois do auge da corrente literária?

    Ousemos concluir isto, onde o raciocínio excede o sonho: que a atual corrente literária portuguesa é completa- e absolutamennte o princípio de uma grande corrente literária, das que precedem as grandes épocas criadoras das grandes nações de quem a civilização é filha.

    Que o mal e o pouco do presente nos não deprimam nem iludam: são eles que confirmam o nosso raciocínio. Tenhamos a coragem de ir para aquela louca alegria que vem das bandas para onde o raciocínio nos leva! Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso. O ponto de luz até onde essa renascença nos deve levar não se pode dizer neste breve estudo; desacompanhada de um raciocínio confirmativo, essa previsão pareceria um lúcido sonho de louco.

    Tenhamos fé. Tornemos essa crença, afinal lógica, num futuro mais glorioso do que a imaginação o ousa conceber, a nossa alma e o nosso corpo, o quotidiano e o eterno de nós. Dia e noite, em pensamento e ação, em sonho e vida, esteja connosco, para que nenhuma das nossas almas falte à sua missão de hoje, de criar o supra-Portugal de amanhã.

    Fernando Pessoa.

  • Names

    • Alexander Pope
    • Arthur Wellesley Duke of Wellington
    • Edmund Spenser
    • Horatio Nelson
    • John Dryden
    • John Milton
    • Luiz de Camões
    • Luís XIV
    • Oliver Cromwell
    • Percy Bysshe Shelley
    • Robert Browning
    • Rémy de Gourmont
    • Samuel Taylor Coleridge
    • Teixeira de Pascoaes
    • Victor Hugo
    • William Shakespeare

    Titles

    • Le Chemin du Velours