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De Newcastle-On-Tyne — Álvaro de Campos escreve à ʺContemporâneaʺ

Álvaro de Campos

Contemporânea 4, outubro de 1922, p. 4.

  • DE NEWCASTLE-ON-TYNE
    Alvaro de Campos
    ESCREVE Á “CONTEMPORANEA"

    Meu querido José Pacheco:

    Venho escrever-lhe para o felicitar pela sua Contemporanea, para lhe dizer que não tenho escripto nada, e para pôr alguns embargos ao artigo do Fernando Pessoa.

    Quereria mandar-lhe tambem collaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou.

    Isto de mim, que é quem mais proximo está de mim, apezar de tudo. De si e de sua revista, tenho saudades do nosso Orpheu. V. continúa subrepticiamente, e ainda bem. Estamos, afinal, todos no mesmo logar. Parece que variamos só com a oscillação de quem se equilibra. Repito-lhe que o felicito. Julgava difficil fazer tanto bem aos olhos em Portugal com uma coisa impressa. Julgo bom que julgasse mal. Auguro á Contemporanea o futuro que lhe desejo.

    Agora o artigo do Fernando. Com o intervallo entre a primeira palavra d’esta carta e a primeira palavra d’este paragrapho, já quasi me não lembra o que é que lhe queria dizer do artigo. Talvez pensasse em dizer exactamente o que vou escrever a seguir. Emfim, prometti, e digo o que sinto agora, e segundo os nervos d’este momento.

    Continúa o Fernando Pessoa com aquella mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam. Nada se prova senão para ter a hypocrisia de não affirmar. O raciocinio é uma timidez ― duas timidezes talvez, sendo a segunda a de ter vergonha de estar calado.

    Ideal esthetico, meu querido José Pacheco, ideal esthetico! Onde foi essa phrase buscar sentido? E o que encontrou lá quando o descobriu? Não ha ideaes nem estheticas senão nas illusões que nós fazemos d’elles. O ideal é um mytho da acção, um estimulante como o opio ou a cocaina: serve para sermos outros, mas paga-se caro ― com o nem sermos quem poderiamos ter sido.

    Esthetica, José Pacheco? Não ha belleza, como não ha moral, como não ha formulas senão para definir compostos. Na tragedia physico-chimica que se chama a Vida, essas coisas são como chammas ― simples signaes de combustão.

    A belleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si-propria de preferencias provavelmente de origem magnetica. Tudo é um jogo de forças, e na obra da arte não temos que procurar «belleza» ou coisa que possa andar no goso d’esse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força e equilibrio de força ― energia e harmonia, se V. quizer.

    Perante qualquer obra de qualquer arte ― desde a de guardar porcos á de construir symphonias ― pergunto só: quanta força? quanta mais-força? quanta violencia de tendencia? quanta violencia reflexa de tendencia, violencia da tendencia sobre si-propria, força da força em não se desviar da sua direcção, que é um elemento da sua força?

    O resto é o mytho das Danaides, ou outro qualquer mytho ― porque todo o mytho é o das Danaides, e todo o pensamento (diga-o ao Fernando) enche eternamente um tonel eternamente vazio.

    Li o livro do Botto e gosto d’elle. Gosto d’elle porque a arte do Botto é o contrario da minha. Se eu gostasse só da minha arte, nem da minha arte gostava, porque varío.

    E, àparte gostar, porque gosto? É sempre mau perguntar, porque pode haver resposta. Mas pergunto ― porque gosto? Ha força, ha equilibrio de força, nas Canções?

    Louvo nas Canções a força que lhes encontro. Essa força não vejo que tenha que ver com ideaes nem com estheticas. Tem que ver com immoralidade. É a immoralidade absoluta, despida de duvidas. Assim ha direcção absoluta ― força portanto; e ha harmonia em não admittir condições a essa immoralidade. O Botto tende com uma energia tenaz para todo o immoral; e tem a harmonia de não tender para mais coisa alguma. Acho inutil metter os gregos no caso; grego se veria o Fernando com elles se elles lhe apparecessem a pedir-lhe contas do sarilho de estheticas em que os metteu. Os gregos eram lá esthetas! Os gregos existiram.

    A arte do Botto é integralmente immoral. Não ha cellula nella que esteja decente. E isso é uma força porque é uma não-hypocrisia, uma não-complicação. Wilde tergiversava constantemente. Baudelaire formulou uma these moral da immoralidade; disse que o mau era bom por ser mau, e assim lhe chamou bom. O Botto é mais forte: dá á sua immoralidade razões puramente immoraes, porque lhe não dá nenhumas.

    O Botto tem isto de forte e de firme: é que não dá desculpas. E eu acho, e deverei talvez sempre achar, que não dar desculpas é melhor que ter razão.

    Não lhe digo mais. Se continuasse, contradizer-me-hia. Seria abominavel, porque talvez fôsse uma maneira (a inversa) de ser logico. Quem sabe?

    Relembro saudosamente ― aqui do Norte improficuo ― os nossos tempos do Orpheu, a antiga camaradagem, tudo em Lisboa de que eu gostava, e tudo em Lisboa de que eu não gostava ― tudo com a mesma saudade.

    Saúdo-o em Distancia Constellada. Esta carta leva-lhe a minha affeição pela sua revista; não lhe leva a minha amisade por si porque V. já ha muito tempo ahi a tem.

    Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.

    Um abraço do
    camarada amigo

    ALVARO DE CAMPOS

  • DE NEWCASTLE-ON-TYNE
    Álvaro de Campos
    ESCREVE À “CONTEMPORÂNEA"

    Meu querido José Pacheco:

    Venho escrever-lhe para o felicitar pela sua Contemporânea, para lhe dizer que não tenho escrito nada, e para pôr alguns embargos ao artigo do Fernando Pessoa.

    Quereria mandar-lhe também colaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou.

    Isto de mim, que é quem mais próximo está de mim, apesar de tudo. De si e de sua revista, tenho saudades do nosso Orpheu. V. continua subrepticiamente, e ainda bem. Estamos, afinal, todos no mesmo lugar. Parece que variamos só com a oscilação de quem se equilibra. Repito-lhe que o felicito. Julgava difícil fazer tanto bem aos olhos em Portugal com uma coisa impressa. Julgo bom que julgasse mal. Auguro à Contemporânea o futuro que lhe desejo.

    Agora o artigo do Fernando. Com o intervalo entre a primeira palavra desta carta e a primeira palavra deste parágrafo, já quase me não lembra o que é que lhe queria dizer do artigo. Talvez pensasse em dizer exatamente o que vou escrever a seguir. Emfim, prometi, e digo o que sinto agora, e segundo os nervos deste momento.

    Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam. Nada se prova senão para ter a hipocrisia de não afirmar. O raciocínio é uma timidez ― duas timidezes talvez, sendo a segunda a de ter vergonha de estar calado.

    Ideal estético, meu querido José Pacheco, ideal estético! Onde foi essa frase buscar sentido? E o que encontrou lá quando o descobriu? Não ha ideais nem estéticas senão nas ilusões que nós fazemos deles. O ideal é um mito da ação, um estimulante como o ópio ou a cocaína: serve para sermos outros, mas paga-se caro ― com o nem sermos quem poderíamos ter sido.

    Estética, José Pacheco? Não há beleza, como não há moral, como não há fórmulas senão para definir compostos. Na tragédia físico-química que se chama a Vida, essas coisas são como chamas ― simples sinais de combustão.

    A beleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si própria de preferências provavelmente de origem magnética. Tudo é um jogo de forças, e na obra da arte não temos que procurar «beleza» ou coisa que possa andar no gozo desse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força e equilíbrio de força ― energia e harmonia, se V. quiser.

    Perante qualquer obra de qualquer arte ― desde a de guardar porcos à de construir sinfonias ― pergunto só: quanta força? quanta mais-força? quanta violência de tendência? quanta violência reflexa de tendência, violência da tendência sobre si própria, força da força em não se desviar da sua direção, que é um elemento da sua força?

    O resto é o mito das Danaides, ou outro qualquer mito ― porque todo o mito é o das Danaides, e todo o pensamento (diga-o ao Fernando) enche eternamente um tonel eternamente vazio.

    Li o livro do Botto e gosto dele. Gosto dele porque a arte do Botto é o contrário da minha. Se eu gostasse só da minha arte, nem da minha arte gostava, porque vario.

    E, à parte gostar, porque gosto? É sempre mau perguntar, porque pode haver resposta. Mas pergunto ― porque gosto? Há força, há equilíbrio de força, nas Canções?

    Louvo nas Canções a força que lhes encontro. Essa força não vejo que tenha que ver com ideais nem com estéticas. Tem que ver com imoralidade. É a imoralidade absoluta, despida de dúvidas. Assim há direção absoluta ― força portanto; e há harmonia em não admitir condições a essa imoralidade. O Botto tende com uma energia tenaz para todo o imoral; e tem a harmonia de não tender para mais coisa alguma. Acho inútil meter os gregos no caso; grego se veria o Fernando com eles se eles lhe aparecessem a pedir-lhe contas do sarilho de estéticas em que os meteu. Os gregos eram lá estetas! Os gregos existiram.

    A arte do Botto é integralmente imoral. Não ha célula nela que esteja decente. E isso é uma força porque é uma não-hipocrisia, uma não-complicação. Wilde tergiversava constantemente. Baudelaire formulou uma tese moral da imoralidade; disse que o mau era bom por ser mau, e assim lhe chamou bom. O Botto é mais forte: dá à sua imoralidade razões puramente imorais, porque lhe não dá nenhumas.

    O Botto tem isto de forte e de firme: é que não dá desculpas. E eu acho, e deverei talvez sempre achar, que não dar desculpas é melhor que ter razão.

    Não lhe digo mais. Se continuasse, contradizer-me-ia. Seria abominável, porque talvez fosse uma maneira (a inversa) de ser lógico. Quem sabe?

    Relembro saudosamente ― aqui do Norte improfícuo ― os nossos tempos do Orpheu, a antiga camaradagem, tudo em Lisboa de que eu gostava, e tudo em Lisboa de que eu não gostava ― tudo com a mesma saudade.

    Saúdo-o em Distância Constelada. Esta carta leva-lhe a minha afeição pela sua revista; não lhe leva a minha amizade por si porque V. já há muito tempo aí a tem.

    Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.

    Um abraço do
    camarada amigo

    ÁLVARO DE CAMPOS

  • Names

    • António Botto
    • Charles Baudelaire
    • Fernando Pessoa
    • José Pacheco
    • Oscar Wilde
    • Álvaro de Campos

    Titles

    • Canções
    • Contemporanea

    Periodicals

    • Contemporânea
    • Orpheu