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Do Livro ʺMensagemʺ

Fernando Pessoa

Diário de Lisboa, 14 de dezembro de 1934, p. 5.

  • Do livro ʺMENSAGEMʺ de FERNANDO PESSOA

    transcrevem-se 3 poemas com
    3 ilustrações ineditas de ALMADA

    1.

    O INFANTE

    Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
    Deus quis que a terra fosse toda uma,
    Que o mar unisse, já não separasse.
    Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
    E a orla branca foi de ilha em continente.
    Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
    E viu-se a terra inteira, de repente,
    Surgir, redonda, do azul profundo.
    Quem te sagrou creou-te portuguez.
    Do mar e nós em ti nos deu signal.
    Cumpriu-se o Mar, e o Imperio se desfez.
    Senhor, falta cumprir-se Portugal!

    2.

    O MOSTRENGO

    O mostrengo que está no fim do mar
    Na noite de breu ergueu-se a voar;
    Á roda da nau voou trez vezes,
    Voou trez vezes a chiar,
    E disse: «Quem é que ousou entrar
    Nas minhas cavernas que não desvendo,
    Meus tectos negros do fim do mundo?»
    E o homem do leme disse, tremendo,

    «El-Rei D. João Segundo!»


    «De quem são as velas onde me roço?
    De quem as quilhas que vejo e ouço?»
    Disse o mostrengo, e rodou trez vezes.
    Trez vezes rodou immundo e grosso,
    «Quem vem poder o que só eu posso,
    Que moro onde nunca ninguem me visse
    E escorro os medos do mar sem fundo?»
    E o homem do leme tremeu, e disse,

    «El-Rei D. João Segundo!»


    Trez vezes do leme as mãos ergueu,
    Trez vezes ao leme as reprendeu,
    E disse no fim de temer trez vezes:
    «Aqui ao leme sou mais do que eu:
    Sou um Povo que quer o mar que é teu;
    E mais que o mostrengo, que me a alma teme
    E roda nas trevas do fim do mundo,
    Manda a vontade, que me ata ao leme,

    De El-Rei D. João Segundo!»


    3.

    PRECE

    Senhor, a noite veio e a alma é vil.
    Tanta foi a tormenta e a vontade!
    Restam-nos hoje, no silencio hostil,
    O mar universal e a saudade.
    Mas a chamma, que a vida em nós creou,
    Se ainda ha vida ainda não é finda.
    O frio morto em cinzas a occultou:
    A mão do vento pode erguel-a ainda.
    Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ancia —,
    Com que a chamma do exforço se remoça,
    E outra vez conquistemos a Distancia —
    Do mar ou outra, mas que seja nossa!

    Estes poemas foram incluídos no conjunto ʺMar Portuguezʺ (Contemporânea, Outubro de 1922; Leitura para todos, Junho de 1926 e Revolução, 16 de Junho de 1933), nas posições I, IV e XII, com diferenças ortográficas e de pontuação e surgindo ʺO Mostrengoʺ sob o título ʺO Morcegoʺ. Foram também incluídos no livro Mensagem (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934), com um texto idêntico ao da presente publicação mas ocupando as respetivas posições em ʺMar Portuguezʺ, título da segunda parte do livro ʺMensagemʺ.

  • Do livro “MENSAGEM” de FERNANDO PESSOA

    transcrevem-se 3 poemas com
    3 ilustrações inéditas de ALMADA

    1.

    O INFANTE

    Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
    Deus quis que a terra fosse toda uma,
    Que o mar unisse, já não separasse.
    Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
    E a orla branca foi de ilha em continente.
    Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
    E viu-se a terra inteira, de repente,
    Surgir, redonda, do azul profundo.
    Quem te sagrou criou-te português.
    Do mar e nós em ti nos deu sinal.
    Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
    Senhor, falta cumprir-se Portugal!

    2.

    O MOSTRENGO

    O mostrengo que está no fim do mar
    Na noite de breu ergueu-se a voar;
    À roda da nau voou três vezes,
    Voou três vezes a chiar,
    E disse: «Quem é que ousou entrar
    Nas minhas cavernas que não desvendo,
    Meus tetos negros do fim do mundo?»
    E o homem do leme disse, tremendo,

    «El-Rei D. João Segundo!»


    «De quem são as velas onde me roço?
    De quem as quilhas que vejo e ouço?»
    Disse o mostrengo, e rodou três vezes.
    Três vezes rodou imundo e grosso,
    «Quem vem poder o que só eu posso,
    Que moro onde nunca ninguém me visse
    E escorro os medos do mar sem fundo?»
    E o homem do leme tremeu, e disse,

    «El-Rei D. João Segundo!»


    Três vezes do leme as mãos ergueu,
    Três vezes ao leme as reprendeu,
    E disse no fim de temer três vezes:
    «Aqui ao leme sou mais do que eu:
    Sou um Povo que quer o mar que é teu;
    E mais que o mostrengo, que me a alma teme
    E roda nas trevas do fim do mundo,
    Manda a vontade, que me ata ao leme,

    De El-Rei D. João Segundo!»


    3.

    PRECE

    Senhor, a noite veio e a alma é vil.
    Tanta foi a tormenta e a vontade!
    Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
    O mar universal e a saudade.
    Mas a chama, que a vida em nós criou,
    Se ainda há vida ainda não é finda.
    O frio morto em cinzas a ocultou:
    A mão do vento pode erguê-la ainda.
    Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,
    Com que a chama do esforço se remoça,
    E outra vez conquistemos a Distância —
    Do mar ou outra, mas que seja nossa!

    Estes poemas foram incluídos no conjunto ʺMar Portuguezʺ (Contemporânea, Outubro de 1922; Leitura para todos, Junho de 1926 e Revolução, 16 de Junho de 1933), nas posições I, IV e XII, com diferenças ortográficas e de pontuação e surgindo ʺO Mostrengoʺ sob o título ʺO Morcegoʺ. Foram também incluídos no livro Mensagem (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934), com um texto idêntico ao da presente publicação mas ocupando as respetivas posições em ʺMar Portuguezʺ, título da segunda parte do livro ʺMensagemʺ.