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A loucura do ʺDuceʺ

Fernando Pessoa

Sol , 22 de novembro de 1926, p. 1.

  • A LOUCURA DO "DUCE"

    Fascistas italianos em Lisboa

    Um desmentido no ar — Os privilegios de certa Imprensa — De noite todas as camisas... são negras...

    Lemos no Diário de Noticias de ontem, em 4ª página, a propósito da saída para Madrid do fascista italiano (sic) Edgio Maria Gray (oh! o nacionalismo romano dos Grays!...), o seguinte:

    Do consulado de Italia em Lisboa escrevem-nos dizendo não existir nos seus registos nenhum italiano com o nome daquele que concedeu uma entrevista a um nosso colega da manhã, sobre fascismo.

    O «nosso colega» – somos nós. A entrevista intitulava-se O «Duce» Mussolini é um louco ... O entrevistado denominou-se Giovanni B. Angioletti; inculcou-se colaborador do Mercure de France .

    Temos uma civilidade tradicional que nunca negou guarida ou réplica a quem a solicitar; temos uma Lei de Imprensa que dá o direito de resposta no próprio local onde o facto contestável se publicou. É isto ignorado no Consulado de Italia? Não teve o sr. consul ainda a oportunidade de conhecer os nossos costumes e as nossas leis?

    No Consulado nunca se leu o Mercure de France .

    Não nos compete a nós delatar aos agentes do «fascio» italiano a presença civil dos perseguidos do «Duce». Não será por via do nosso jornal que os «camisas brancas» se macularão de negro nem que o óleo de ricino se ministrará como ridicula arma a adversários que se acolheram á tradicional hospitalidade portuguesa.

    Esteve em Lisboa o sr. Gray. Deu-se o estranho facto de vir a Portugal em propaganda da politica interna do seu país e de escolher para local dessa campanha o edificio onde se vai instalar a Legação de Italia.

    Anunciou-se essa conferencia só para italianos; mas a ela assistiram, reportando o facto, os representantes da imprensa que merecia a confiança ou a consideração dos «camisas negras».

    Na entrevista por nós publicada o que valia á contestação do representante italiano não era o nome nem sequer a personalidade do entrevistado. As afirmações subsistem incontestadas e sem discussão.

    Movam-se os prélos. Está concedido o direito de resposta.

    Uma carta do dr. Angioletti

    Já depois de composto o artigo acima, recebemos do sr. dr. Giovanni B. Angioletti a seguinte carta, a que damos imediata publicidade, no original e na tradução literal que dela fizémos:

    Monsieur: — Revenu d’un de ces petits voyages que j’ai l’habitude de faire au Nord de votre beau pays, ce n’est que ce moment même que je viens de lire l’interview qu’un de vos rédacteurs m’a fait l’honneur de me demander. Je vous remercie vivement, tant des éloges, vraiment excessifs, dont vous avez entouré mon nom encore obscur, que de l’exactitude absolue — verbale même — qui est le trait saillant de la reproduction de ce que je vous ai dit.

    Je vous prie, toutefois, de rectifier une petite erreur, dont je ne m’explique pas l’origine. Je n’ai jamais collaboré au Mercure de France; je le lis même très rarement. Je me hâte de vous signaler cette erreur et de vous en demander la correction, parce qu’il peut se faire qu’il y ait en effet un Angioletti, ou quelque chose de semblable, qui soit collaborateur du Mercure. C’est peut-être là l’origine de la fausse identification qui s’est établie dans l’espirit de votre rédacteur. Et ce serait faire un assez mauvais service à cet homonyme inconnu que de l’exposer — peut-être vit-il en Italie — aux représailles criminelles, aux violences sinistres dont se compose la logique essentielle des serfs du Cesar Borgia.

    Je viens de lire aussi, dans un journal qui n’est pas le vôtre, que le Consulat d’Italie a déclaré qu’il ne porte pas mon nom sur ces régistres. Le Consul dit vrai, mais vou l’aviez déjà dit dans les tous premiers mots de votre article...

    Agréez, Monsieur, avec la réitération de mes remerciments, l’assurance de mes sentiments les plus distingués.

    (a) G. B. ANGIOLETTI

    Eis a tradução:

    …Sr. – De regresso de uma daquelas pequenas viagens que tenho por hábito fazer ao Norte do vosso belo país, é só neste momento que acabo de ler a entrevista que um dos vossos redactores me fez a honra de me pedir. Agradeço-lhe calorosamente não só os elogios, em verdade excessivos, com que cercou meu nome ainda obscuro, mas ainda a exactidão absoluta – verbal mesmo – que é o traço saliente da reprodução do que eu vos disse.

    Peço-vos, comtudo, que rectifiqueis um pequeno êrro, cuja origem não sei qual fôsse. Nunca colaborei no Mercure de France; raras vezes, mesmo, o leio. Apresso-me, porém, em vos indicar este êrro, e em vos pedir que o corrijais, porque pode dar-se o caso de haver, de facto, um Angioletti, ou qualquer coisa parecida, que seja colaborador do Mercure. Está nisso, talvez, a origem da falsa identificação que se estabeleceu no espirito do vosso redactor. E seria prestar um serviço bastante mau a esse homónimo desconhecido o expô-lo – talvez ele viva em Italia – ás represálias criminais, ás violencias sinistras, de que se compõe a lógica essencial dos servos do Cesar Borgia.

    Acabo de ler tambem, num jornal que não é o vosso, que o Consulado de Italia declarou que o meu nome não existe nos seus registos. O Consul diz a verdade, mas já V. a havia dito logo nas primeiras palavras do vosso artigo.

    Com a reiteração dos meus agradecimentos, aceite a afirmação da minha maior consideração.

    (a) G. B. ANGIOLETTI

    Texto atribuído a Pessoa por José Barreto (Barreto, 2012, pp. 225-252), com base na lista de projetos BNP 189, que por sua vez é material preparatório da ʺTábua Bibliográficaʺ, publicada na revista Presença em Dezembro de 1928. Contudo, não é possível determinar se todo o texto é da autoria de Pessoa ou só a carta e a sua tradução. Algumas linhas da introdução sugerem também uma autoria pessoana.
  • A LOUCURA DO "DUCE"

    Fascistas italianos em Lisboa

    Um desmentido no ar — Os privilégios de certa Imprensa — De noite todas as camisas... são negras...

    Lemos no Diário de Noticias de ontem, em 4ª página, a propósito da saída para Madrid do fascista italiano (sic) Edgio Maria Gray (oh! o nacionalismo romano dos Grays!...), o seguinte:

    Do consulado de Itália em Lisboa escrevem-nos dizendo não existir nos seus registos nenhum italiano com o nome daquele que concedeu uma entrevista a um nosso colega da manhã, sobre fascismo.

    O «nosso colega» — somos nós. A entrevista intitulava-se O «Duce» Mussolini é um louco ... O entrevistado denominou-se Giovanni B. Angioletti; inculcou-se colaborador do Mercure de France.

    Temos uma civilidade tradicional que nunca negou guarida ou réplica a quem a solicitar; temos uma Lei de Imprensa que dá o direito de resposta no próprio local onde o facto contestável se publicou. É isto ignorado no Consulado de Itália? Não teve o sr. cônsul ainda a oportunidade de conhecer os nossos costumes e as nossas leis?

    No Consulado nunca se leu o Mercure de France.

    Não nos compete a nós delatar aos agentes do «fascio» italiano a presença civil dos perseguidos do «Duce». Não será por via do nosso jornal que os «camisas brancas» se macularão de negro nem que o óleo de rícino se ministrará como ridícula arma a adversários que se acolheram à tradicional hospitalidade portuguesa.

    Esteve em Lisboa o sr. Gray. Deu-se o estranho facto de vir a Portugal em propaganda da política interna do seu país e de escolher para local dessa campanha o edifício onde se vai instalar a Legação de Itália.

    Anunciou-se essa conferência só para italianos; mas a ela assistiram, reportando o facto, os representantes da imprensa que merecia a confiança ou a consideração dos «camisas negras».

    Na entrevista por nós publicada o que valia à contestação do representante italiano não era o nome nem sequer a personalidade do entrevistado. As afirmações subsistem incontestadas e sem discussão.

    Movam-se os prelos. Está concedido o direito de resposta.

    Uma carta do dr. Angioletti

    Já depois de composto o artigo acima, recebemos do sr. dr. Giovanni B. Angioletti a seguinte carta, a que damos imediata publicidade, no original e na tradução literal que dela fizemos:

    Monsieur: — Revenu d’un de ces petits voyages que j’ai l’habitude de faire au Nord de votre beau pays, ce n’est que ce moment même que je viens de lire l’interview qu’un de vos rédacteurs m’a fait l’honneur de me demander. Je vous remercie vivement, tant des éloges, vraiment excessifs, dont vous avez entouré mon nom encore obscur, que de l’exactitude absolue — verbale même — qui est le trait saillant de la reproduction de ce que je vous ai dit.

    Je vous prie, toutefois, de rectifier une petite erreur, dont je ne m’explique pas l’origine. Je n’ai jamais collaboré au Mercure de France; je le lis même très rarement. Je me hâte de vous signaler cette erreur et de vous en demander la correction, parce qu’il peut se faire qu’il y ait en effet un Angioletti, ou quelque chose de semblable, qui soit collaborateur du Mercure. C’est peut-être là l’origine de la fausse identification qui s’est établie dans l’espirit de votre rédacteur. Et ce serait faire un assez mauvais service à cet homonyme inconnu que de l’exposer — peut-être vit-il en Italie — aux représailles criminelles, aux violences sinistres dont se compose la logique essentielle des serfs du Cesar Borgia.

    Je viens de lire aussi, dans un journal qui n’est pas le vôtre, que le Consulat d’Italie a déclaré qu’il ne porte pas mon nom sur ces régistres. Le Consul dit vrai, mais vou l’aviez déjà dit dans les tous premiers mots de votre article...

    Agréez, Monsieur, avec la réitération de mes remerciments, l’assurance de mes sentiments les plus distingués.

    (a) G. B. ANGIOLETTI

    Eis a tradução:

    …Sr. — De regresso de uma daquelas pequenas viagens que tenho por hábito fazer ao Norte do vosso belo país, é só neste momento que acabo de ler a entrevista que um dos vossos redatores me fez a honra de me pedir. Agradeço-lhe calorosamente não só os elogios, em verdade excessivos, com que cercou meu nome ainda obscuro, mas ainda a exatidão absoluta — verbal mesmo — que é o traço saliente da reprodução do que eu vos disse.

    Peço-vos, contudo, que retifiqueis um pequeno erro, cuja origem não sei qual fosse. Nunca colaborei no Mercure de France; raras vezes, mesmo, o leio. Apresso-me, porém, em vos indicar este erro, e em vos pedir que o corrijais, porque pode dar-se o caso de haver, de facto, um Angioletti, ou qualquer coisa parecida, que seja colaborador do Mercure. Está nisso, talvez, a origem da falsa identificação que se estabeleceu no espírito do vosso redator. E seria prestar um serviço bastante mau a esse homónimo desconhecido o expô-lo — talvez ele viva em Itália — às represálias criminais, às violências sinistras, de que se compõe a lógica essencial dos servos do César Bórgia.

    Acabo de ler também, num jornal que não é o vosso, que o Consulado de Itália declarou que o meu nome não existe nos seus registos. O Cônsul diz a verdade, mas já V. a havia dito logo nas primeiras palavras do vosso artigo.

    Com a reiteração dos meus agradecimentos, aceite a afirmação da minha maior consideração.

    (a) G. B. ANGIOLETTI

    Texto atribuído a Pessoa por José Barreto (Barreto, 2012, pp. 225-252), com base na lista de projetos BNP 189, que por sua vez é material preparatório da ʺTábua Bibliográficaʺ, publicada na revista Presença em Dezembro de 1928. Contudo, não é possível determinar se todo o texto é da autoria de Pessoa ou só a carta e a sua tradução. Algumas linhas da introdução sugerem também uma autoria pessoana.
  • Names

    • Benito Mussolini
    • César Bórgia
    • Edgio Maria Gray
    • Giovanni Battista Angioletti

    Periodicals

    • Diário de Notícias
    • Mercure de France