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Lisbon Revisited (1926)

Álvaro de Campos

Contemporânea 2, julho ― outubro de 1926, pp. 82-83.

  • LISBON REVISITED (1926)

    Nada me prende a nada.
    Quero cincoenta coisas ao mesmo tempo.
    Anceio com uma angustia de fome de carne
    O que não sei que seja ―
    Definidamente pelo indefinido…
    Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
    De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
    Fecharam-me todas as portas abstractas e necessarias.
    Correram cortinas de todas as hypoteses que eu poderia ver da rua.
    Não ha na travessa achada o numero da porta que me deram,
    Accordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
    Até os meus exercitos sonhados sofreram derrota.
    Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
    Até a vida só desejada me farta ― até essa vida…
    Comprehendo a intervallos desconnexos;
    Escrevo por lapsos de cansaço;
    E um tedio que é até do tedio arroja-me á praia.
    Não sei que destino ou futuro compete á minha angustia sem leme;
    Não sei que ilhas do Sul impossivel aguardam-me naufrago;
    Ou que palmares de litteratura me darão ao menos um verso.
    Não, não sei isto, nem outra cousa, nem cousa nenhuma…
    E, no fundo do meu espirito, onde sonho o que sonhei,
    Nos campos ultimos da alma, onde memóro sem causa
    (E o passado é uma nevoa natural de lagrimas falças),
    Nas estradas e atalhos das florestas longinquas
    Onde suppuz o meu ser,
    Fogem desmantelados, ultimos restos
    Da illusão final,
    Os meus exercitos sonhados, derrotados sem ter sido,
    As minhas cohortes por existir, esfaceladas em Deus.
    Outra vez te revejo,
    Cidade da minha infancia pavorosamente perdida…
    Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…
    Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
    E aqui tornei a voltar, e a voltar,
    E aqui de novo tornei a voltar?
    Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
    Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memoria,
    Uma série de sonhos de mim de alguem de fóra de mim?
    Outra vez te revejo,
    Com o coração mais longinquo, a alma menos minha.
    Outra vez te revejo ― Lisboa e Tejo e tudo ―,
    Transeunte inutil de ti e de mim,
    Extrangeiro aqui como em toda a parte,
    Casual na vida como na alma,
    Phantasma a errar em salas de recordações,
    Ao ruido dos ratos e das tabuas que rangem
    No castelo maldicto de ter que viver…
    Outra vez te revejo,
    Sombra que passa atravez de sombras, e brilha
    Um momento a uma luz funebre desconhecida,
    E entra na noite como um rastro de barco se perde
    Na agua que deixa de se ouvir…
    Outra vez te revejo,
    Mas, ai, a mim não me revejo!
    Partiu-se o espelho magico em que me revia identico,
    E em cada fragmento fatidico vejo só um bocado de mim ―
    Um bocado de ti e de mim!…

    ALVARO DE CAMPOS

  • LISBON REVISITED (1926)

    Nada me prende a nada.
    Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
    Anseio com uma angústia de fome de carne
    O que não sei que seja —
    Definidamente pelo indefinido…
    Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
    De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
    Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
    Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
    Não há na travessa achada o número da porta que me deram,
    Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
    Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
    Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
    Até a vida só desejada me farta — até essa vida…
    Compreendo a intervalos desconexos;
    Escrevo por lapsos de cansaço;
    E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
    Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
    Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
    Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
    Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
    E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
    Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
    (E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
    Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
    Onde supus o meu ser,
    Fogem desmantelados, últimos restos
    Da ilusão final,
    Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
    As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.
    Outra vez te revejo,
    Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
    Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…
    Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
    E aqui tornei a voltar, e a voltar,
    E aqui de novo tornei a voltar?
    Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
    Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
    Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
    Outra vez te revejo,
    Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
    Outra vez te revejo — Lisboa e Tejo e tudo —,
    Transeunte inútil de ti e de mim,
    Estrangeiro aqui como em toda a parte,
    Casual na vida como na alma,
    Fantasma a errar em salas de recordações,
    Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
    No castelo maldito de ter que viver…
    Outra vez te revejo,
    Sombra que passa através de sombras, e brilha
    Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
    E entra na noite como um rastro de barco se perde
    Na água que deixa de se ouvir…
    Outra vez te revejo,
    Mas, ai, a mim não me revejo!
    Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
    E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim ―
    Um bocado de ti e de mim!…

    ÁLVARO DE CAMPOS